“Tens Um Mês Para Sair”: Quando a Minha Mãe Me Expulsou de Casa

“Tens um mês para sair daqui, Mariana. Preciso de viver sozinha agora.”

As palavras da minha mãe ecoaram pelo corredor estreito do nosso apartamento em Almada, como se fossem um trovão num dia de verão. A minha irmã mais nova, Inês, ficou parada ao meu lado, os olhos arregalados, a boca entreaberta. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou.

“Mas… mãe? Como assim? Nós… não temos para onde ir!” balbuciei, sentindo o chão fugir-me dos pés.

A minha mãe, Teresa, respirou fundo. O rosto dela estava cansado, vincado por rugas que pareciam ter surgido todas de uma vez nos últimos meses. “Eu já não aguento mais. Preciso do meu espaço. Preciso de paz. Vocês são adultas, arranjem as vossas vidas.”

Inês começou a chorar baixinho. Tinha acabado de fazer vinte anos e ainda estudava na faculdade. Eu tinha vinte e cinco, trabalhava num call center desde que acabara o curso de História, mas o salário mal dava para pagar os transportes e ajudar com as contas lá em casa.

“Não podes fazer isto…”, sussurrei, mas ela virou-me as costas e entrou no quarto dela, fechando a porta com força.

Ficámos ali, eu e a Inês, sem saber o que fazer. O apartamento parecia mais pequeno do que nunca. Lembrei-me de quando éramos pequenas e a minha mãe nos fazia panquecas ao domingo de manhã. Lembrei-me do cheiro do café e do som da rádio comercial a tocar baixinho. Como é que chegámos aqui?

Naquela noite, quase não dormi. Ouvia os passos da minha mãe pelo corredor, o ranger da cama dela cada vez que se virava. A Inês chorou até adormecer. Eu só conseguia pensar em como tudo tinha mudado desde que o meu pai morreu.

O meu pai era o pilar da nossa família. Trabalhava como motorista de autocarros na Carris e fazia questão de jantar connosco todos os dias, mesmo quando chegava tarde. Quando morreu num acidente na Ponte 25 de Abril, a nossa vida desmoronou-se. A minha mãe ficou diferente – mais fria, mais distante. Mas nunca pensei que chegasse ao ponto de nos expulsar.

Na manhã seguinte, tentei falar com ela outra vez.

“Mãe, por favor… pelo menos deixa-nos ficar até ao fim do semestre da Inês.”

Ela estava sentada à mesa da cozinha, a olhar para uma chávena de chá como se fosse um poço sem fundo.

“Não posso, Mariana. Já decidi.”

“Mas porquê agora? O que é que aconteceu?”

Ela levantou os olhos para mim e vi neles uma tristeza profunda. “Estou cansada. Sinto-me sufocada nesta casa. Preciso de recomeçar.”

“E nós? Somos tuas filhas…”

Ela não respondeu. Levantou-se e saiu para ir trabalhar.

Durante dias andei perdida. Falei com colegas do trabalho, procurei quartos para arrendar em Lisboa – todos demasiado caros ou demasiado pequenos. A Inês estava em pânico com os exames e mal conseguia estudar.

Uma noite, depois do jantar, ouvi a minha mãe ao telefone no quarto dela:

“Sim, já lhes disse. Não aguento mais… preciso mesmo disto.”

A voz dela soava estranha – quase aliviada. Fiquei a pensar se teria alguém novo na vida dela. Um namorado? Uma amiga? Ou seria apenas o peso dos anos sozinha?

No fim-de-semana seguinte, fomos almoçar à casa da minha tia Rosa em Setúbal. Contei-lhe tudo enquanto lavávamos a loiça.

“Ela não está bem, Mariana”, disse-me a tia Rosa em voz baixa. “Desde que o teu pai morreu que ela nunca mais foi a mesma.”

“Mas expulsar-nos assim? Somos as filhas dela!”

A tia Rosa suspirou. “Às vezes as pessoas magoam quem mais amam porque não sabem pedir ajuda.”

Voltei para casa ainda mais confusa. Queria odiar a minha mãe, mas só conseguia sentir pena dela – e medo do futuro.

Os dias passaram depressa demais. Arranjei um quarto minúsculo em Benfica, partilhado com duas raparigas que mal conhecia. A Inês foi viver para casa de uma colega da faculdade em Odivelas.

No dia em que fizemos as malas, a minha mãe não estava em casa. Deixei-lhe um bilhete na mesa da cozinha:

“Mãe,
Não percebo porque fizeste isto, mas espero que encontres a paz que procuras.
Amo-te sempre,
Mariana”

Quando fechei a porta pela última vez, senti uma dor no peito como se estivesse a deixar para trás uma parte de mim mesma.

Os primeiros meses foram duros. Senti falta do cheiro da roupa lavada da minha mãe, das discussões tontas com a Inês sobre quem ficava com o comando da televisão. O quarto novo era frio e impessoal; as colegas eram simpáticas mas distantes.

A Inês ligava-me quase todos os dias a chorar. “Sinto-me tão sozinha… porque é que ela fez isto connosco?”

Eu tentava ser forte por nós as duas, mas também chorava à noite quando ninguém via.

Um dia recebi uma mensagem da minha mãe:

“Preciso de falar contigo.”

Encontrei-a num café perto do trabalho dela. Estava magra e parecia ainda mais velha.

“Desculpa”, disse ela assim que me viu.

Ficámos ali sentadas em silêncio durante muito tempo.

“Não sei o que me deu”, confessou finalmente. “Senti-me tão perdida… achei que precisava de ficar sozinha para perceber quem sou sem vocês.”

“E percebeste?” perguntei.

Ela abanou a cabeça e chorou baixinho.

Nesse momento percebi que todos nós estávamos perdidos à nossa maneira – cada um à procura de um lugar no mundo depois da tempestade.

Hoje já passaram dois anos desde aquele dia. Eu e a Inês reconstruímos as nossas vidas devagarinho. Ainda falamos com a nossa mãe – agora com menos mágoa e mais compreensão.

Às vezes pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente quem nos magoa tanto? Ou será que certas feridas nunca cicatrizam completamente?

E vocês? Já sentiram que perderam o chão por causa de quem mais amam?