Por que tive de cortar relações com a minha própria mãe: Uma história de traição, perdão e reencontro com o meu valor

— Mariana, não podes continuar a inventar histórias sobre o Rui. Ele é um bom homem, toda a gente sabe — disse a minha mãe, com aquela voz fria que só usava quando queria magoar.

Senti o chão fugir-me dos pés. Estávamos na cozinha da casa onde cresci, o cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o peso das palavras dela. O Rui, o meu ex-marido, tinha acabado de sair dali há meia hora, depois de mais uma discussão sobre a guarda da nossa filha, a Matilde. E a minha mãe, em vez de me abraçar ou perguntar se eu estava bem, defendia-o. Outra vez.

— Mãe, tu viste como ele me tratava! Ouviste as coisas que ele me disse! — tentei argumentar, mas ela já nem olhava para mim. Mexia no pano da loiça como se aquilo fosse mais importante do que a minha dor.

— Mariana, tu sempre foste dramática. O Rui só quer o melhor para a Matilde. Tu é que não sabes ser razoável.

Senti as lágrimas a quererem sair, mas engoli-as. Não ia dar-lhe esse prazer. Saí da cozinha sem dizer mais nada e fechei-me no quarto da infância, onde ainda havia bonecas na prateleira e posters antigos na parede. Sentei-me na cama e abracei os joelhos ao peito. Como é que tudo tinha chegado aqui?

O Rui e eu conhecemo-nos na faculdade, em Coimbra. Ele era charmoso, divertido, fazia-me rir como ninguém. Casámos cedo, talvez cedo demais. A Matilde nasceu dois anos depois e foi aí que tudo começou a mudar. O Rui tornou-se impaciente, agressivo nas palavras, ausente nos gestos. Eu tentava justificar: era o trabalho, era o stress, era o cansaço. Mas as desculpas foram-se esgotando à medida que os gritos aumentavam e as noites em claro se multiplicavam.

Quando finalmente tive coragem para pedir o divórcio, achei que a minha mãe ia apoiar-me. Sempre fomos próximas — ou pelo menos eu achava que sim. Mas ela surpreendeu-me ao dizer que eu devia “dar mais uma oportunidade” ao Rui, “pensar na Matilde”. Quando percebeu que eu não ia voltar atrás, começou a afastar-se. E depois, pior ainda: começou a encontrar-se com o Rui às escondidas para falar sobre mim.

Descobri isso numa tarde chuvosa de novembro. Fui buscar a Matilde à escola e encontrei o carro da minha mãe estacionado à porta do escritório do Rui. Esperei no carro, coração aos pulos. Quando ela saiu, fui ter com ela.

— O que estás aqui a fazer? — perguntei, tentando manter a voz firme.

Ela olhou-me como se eu fosse uma criança birrenta.

— Vim falar com o Rui sobre a Matilde. Ele está preocupado contigo. Diz que andas instável.

Instável? Eu? Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— Mãe, tu acreditas mesmo nele? Achas que eu invento tudo isto?

Ela encolheu os ombros.

— Não sei o que pensar de ti ultimamente, Mariana.

Foi aí que percebi: ela nunca ia estar do meu lado.

Os meses seguintes foram um inferno. A minha mãe começou a aparecer menos vezes em minha casa. Quando vinha, era só para ver a Matilde — e mesmo assim, passava mais tempo ao telefone com o Rui do que comigo. Comecei a sentir-me invisível na minha própria família.

O Natal desse ano foi o pior da minha vida. Estávamos todos à mesa — eu, a Matilde, a minha mãe e o meu irmão mais novo, o Pedro. O Pedro tentava animar o ambiente com piadas secas, mas ninguém ria. A certa altura, a minha mãe virou-se para mim:

— O Rui ligou-me ontem. Disse que quer passar mais tempo com a Matilde este ano.

Olhei para ela, incrédula.

— E tu achas isso bem? Depois de tudo o que ele fez?

Ela suspirou.

— Mariana, tens de aprender a perdoar. Não podes viver agarrada ao passado.

Levantei-me da mesa sem dizer palavra e fui fechar-me na casa de banho. Chorei baixinho para não assustar a Matilde. Senti-me sozinha como nunca antes.

Foi nessa noite que tomei uma decisão: precisava de me afastar da minha mãe para sobreviver. Não podia continuar a expor-me àquela dor constante, àquela sensação de traição diária.

No dia seguinte escrevi-lhe uma mensagem longa — não consegui ligar-lhe porque sabia que ia acabar aos gritos ou em lágrimas. Expliquei-lhe tudo: como me sentia traída, como precisava de espaço para me curar, como esperava que um dia ela percebesse o mal que me estava a fazer.

Ela respondeu apenas: “Faz como quiseres. Eu só quero o melhor para todos.”

Durante semanas chorei todos os dias. Sentia-me culpada por afastar-me da minha própria mãe — quem faz isso? Mas também sentia um alívio estranho por finalmente pôr limites.

A Matilde perguntava pela avó e eu tentava explicar-lhe sem lhe pôr culpas em cima:

— A avó precisa de algum tempo sozinha agora, filha.

O Pedro foi dos poucos que percebeu o meu lado. Ligava-me quase todos os dias:

— Não tens culpa nenhuma disto, mana. A mãe sempre foi teimosa… mas vai perceber um dia.

Mas os meses passaram e nada mudou. A minha mãe continuou próxima do Rui — até foi testemunha dele no tribunal quando discutimos a guarda da Matilde. Quando soube disso senti um nó no estômago tão forte que pensei que ia desmaiar.

No tribunal ela disse:

— A Mariana é boa mãe mas está muito nervosa ultimamente…

Senti-me traída como nunca antes na vida.

Depois disso deixei mesmo de lhe falar. Apaguei o número dela do telemóvel e pedi ao Pedro para não me contar nada sobre ela durante uns tempos.

Foram meses difíceis — sentia falta dela todos os dias mas sabia que não podia voltar atrás sem me perder completamente.

Comecei terapia — pela primeira vez na vida falei abertamente sobre tudo: sobre o medo de ser rejeitada pela família, sobre o peso das expectativas dos outros, sobre como sempre tentei agradar à minha mãe mesmo quando isso me magoava.

Aos poucos fui recuperando forças. Voltei a sair com amigas antigas, inscrevi-me num curso de cerâmica (sempre adorei trabalhar com as mãos), comecei a correr ao fim da tarde enquanto ouvia música alta nos fones para não pensar em mais nada.

A Matilde foi crescendo feliz — apesar de tudo nunca deixei que sentisse falta de amor ou segurança em casa.

Um dia recebi uma carta da minha mãe — escrita à mão, como antigamente:

“Mariana,
Sei que te magoei e não sei se algum dia vais conseguir perdoar-me. Fiz escolhas erradas porque achei que estava a proteger-te… mas percebo agora que só te afastei ainda mais. Sinto muito por tudo isto. Amo-te sempre.
Mãe”

Li aquela carta dezenas de vezes antes de conseguir responder-lhe — desta vez por carta também:

“Mãe,
Precisei afastar-me para sobreviver. Precisei aprender a gostar de mim antes de poder voltar a confiar em ti. Espero que um dia possamos reconstruir alguma coisa… mas agora preciso continuar este caminho sozinha.
Mariana”

Ainda não voltámos a falar cara-a-cara desde então — talvez um dia aconteça. Mas hoje sinto-me mais forte do que nunca porque aprendi finalmente a pôr limites e a cuidar de mim própria primeiro.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas terão passado por algo assim? Quantas terão tido coragem de cortar relações para se protegerem? Será possível reconstruir uma relação depois de tanta dor? Gostava mesmo de saber as vossas histórias.