O Abismo Entre Dois Amores: Quando o Meu Marido e a Minha Mãe Não Se Entendiam

— Não entendo como consegues viver com alguém assim, Mariana! — gritou a minha mãe, com as mãos trémulas, enquanto o Rui batia a porta da cozinha com força.

O cheiro do café queimado pairava no ar, misturado com a tensão que parecia nunca dissipar-se naquela casa. Eu estava ali, entre os dois, como sempre. O olhar da minha mãe era duro, magoado. O do Rui, quando passou por mim, era de frustração e cansaço. E eu? Eu sentia-me partida ao meio.

Nunca imaginei que a minha vida se transformasse nisto. Cresci em Almada, numa casa onde os meus pais raramente levantavam a voz. O meu pai morreu cedo, mas a minha mãe sempre foi o pilar da família. Trabalhadora, honesta, um pouco rígida — mas sempre justa. Quando conheci o Rui na faculdade, achei que ela ia gostar dele: era divertido, trabalhador e tinha um sorriso que me fazia esquecer o mundo. Mas bastou um jantar em nossa casa para perceber que algo estava errado.

— Ele é muito impulsivo, Mariana. Não tem maneiras — disse-me ela nessa noite, enquanto lavava os pratos com força desnecessária.

— Mãe, ele só estava nervoso. Quis impressionar-te.

— Impressionar-me? A falar alto e a rir-se daquela maneira? Não é assim que se faz.

Tentei não dar importância. Achei que era só uma questão de tempo até se habituarem um ao outro. Mas os meses passaram e cada encontro era uma batalha silenciosa. O Rui sentia-se julgado; a minha mãe sentia-se desrespeitada. Eu tentava ser ponte, mas só me sentia cada vez mais sozinha.

Lembro-me de um Natal em particular. A mesa estava posta com todo o cuidado: toalha branca, pratos antigos da minha avó, velas acesas. O Rui chegou atrasado do trabalho e esqueceu-se de trazer o vinho que a minha mãe lhe tinha pedido.

— Não faz mal — disse ela, mas o tom gelado denunciava tudo.

O jantar foi um desfile de indiretas. O Rui tentava contar histórias engraçadas do trabalho; a minha mãe respondia com monossílabos. Quando ele saiu para fumar à varanda, ela virou-se para mim:

— Mariana, tu mereces melhor.

Senti uma dor aguda no peito. Como podia ela dizer aquilo? O Rui era bom para mim. Trabalhava imenso para nos dar uma vida confortável. Sim, era impulsivo e às vezes distraído, mas amava-me. Porque é que ela não conseguia ver isso?

As discussões começaram a ser mais frequentes. O Rui dizia que eu não o defendia; a minha mãe acusava-me de escolher um homem em vez da família.

— Tu mudaste desde que estás com ele — atirou ela um dia, depois de uma discussão sobre as férias de verão.

— Mudei porque cresci! Porque tenho direito à minha vida! — gritei-lhe de volta, surpreendendo-me com a raiva na minha voz.

Ela chorou nesse dia. Eu também. O Rui ficou calado, mas percebi que estava a chegar ao limite.

As coisas pioraram quando engravidei. Achei que um neto ia unir-nos, mas foi o contrário. A minha mãe queria estar presente em tudo: consultas, compras para o bebé, decisões sobre o nome. O Rui sentia-se posto de parte.

— Parece que este filho é dela! — desabafou ele uma noite, enquanto eu tentava acalmá-lo.

— Ela só quer ajudar…

— Não quero ajuda dela! Quero construir a nossa família contigo, não com ela sempre no meio!

Eu chorava quase todas as noites. Sentia-me culpada por tudo: por não conseguir agradar à minha mãe, por não conseguir defender o Rui como ele queria, por não conseguir ser feliz como sempre imaginei.

O nascimento do Tomás foi um momento agridoce. A minha mãe estava lá desde as primeiras contrações; o Rui chegou a correr do trabalho e quase perdeu o parto porque ela insistiu em chamar a ambulância antes de tempo.

Depois disso, as visitas dela tornaram-se diárias e invasivas. O Rui começou a chegar mais tarde a casa; eu sentia-me cada vez mais exausta e sozinha.

Um dia, cheguei do banho e ouvi-os aos gritos na sala:

— Não admito que fale assim à Mariana! — dizia o Rui.

— E eu não admito que trate a filha desta maneira! — respondeu ela.

O Tomás começou a chorar no berço e eu corri para ele, tentando abafar os gritos com canções de embalar. Mas sabia que aquela música já não chegava para tapar as fissuras da nossa família.

A situação tornou-se insustentável. O Rui sugeriu mudarmo-nos para o Porto, onde tinha uma proposta de emprego melhor.

— Vai ser bom para nós — disse ele baixinho, enquanto me abraçava na cama.

Mas eu sabia o que isso significava: afastar-me da minha mãe, deixá-la sozinha em Almada depois de tantos anos juntas.

Quando lhe contei, ela ficou em silêncio durante minutos intermináveis. Depois levantou-se e disse apenas:

— Faz como quiseres. Já vi que não conto para nada nesta família.

No dia da mudança, ela não apareceu para se despedir. Liguei-lhe dezenas de vezes; nunca atendeu.

No Porto, tentei reconstruir-me. O Rui estava mais leve; o Tomás crescia saudável e feliz. Mas eu sentia um vazio impossível de preencher. As noites eram longas e cheias de saudade — da minha mãe, da casa onde cresci, das conversas à mesa da cozinha.

Passaram-se meses sem falarmos. No aniversário do Tomás, enviei-lhe uma foto dele a soprar as velas. Ela respondeu apenas:

— Parabéns ao menino.

Chorei tanto nesse dia que pensei que nunca mais ia conseguir sorrir verdadeiramente.

Hoje olho para trás e pergunto-me: fiz bem? Devia ter lutado mais pela reconciliação? Ou era inevitável escolher entre dois amores impossíveis de conciliar?

Às vezes pergunto-me se alguma vez conseguiremos voltar a ser família ou se certas feridas são mesmo impossíveis de sarar. E vocês? Já tiveram de escolher entre dois amores assim? Como se sobrevive ao vazio deixado por quem devia estar sempre do nosso lado?