Entre a Fé e o Silêncio: O Dia em que a Minha Família se Desfez

— Não posso continuar assim, Ana! — gritou o Rui, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som seco fez-me estremecer. Olhei para ele, os olhos dele vermelhos de raiva e cansaço. — Sempre a tua mãe, sempre ela! E eu? E nós?

A minha garganta apertou-se. Senti as lágrimas a quererem cair, mas engoli-as. Não podia chorar ali, não à frente dele. A chuva batia forte nas janelas do nosso apartamento em Almada, como se quisesse entrar e lavar toda a dor que pairava no ar.

— Rui, ela precisa de mim… — tentei explicar, mas ele interrompeu-me.

— E eu? Eu não preciso? — A voz dele era um sussurro agora, mas cada palavra era uma faca. — Já nem me lembro da última vez que estivemos juntos sem falares dela ou sem receberes uma chamada do hospital.

A verdade é que a minha mãe estava internada há semanas no Hospital Garcia de Orta. Um cancro no pâncreas, disseram-nos. Avançado. Os médicos falavam em meses, talvez semanas. Desde então, a minha vida tornou-se um vaivém entre o hospital, o trabalho e a casa. O Rui sentia-se esquecido, mas como podia eu escolher?

Lembro-me da primeira vez que rezei por ela. Não sou mulher de igreja, nunca fui. Mas naquela noite, sozinha no quarto escuro, ajoelhei-me ao lado da cama e pedi a Deus que não a levasse ainda. Senti-me ridícula, mas também estranhamente aliviada. Como se alguém me ouvisse finalmente.

A minha irmã mais nova, a Joana, ligava-me todos os dias a chorar. — Não aguento ver a mãe assim… — dizia ela, soluçando do outro lado da linha. Eu tentava ser forte por ela, mas por dentro sentia-me a desmoronar.

O meu pai? Ele já não era o mesmo desde que a doença apareceu. Passava os dias sentado à janela da sala deles em Setúbal, olhando para o rio Sado como se esperasse que as águas lhe trouxessem respostas.

Uma noite, depois de mais uma discussão com o Rui — desta vez porque não fui ao jantar de aniversário do irmão dele — sentei-me no carro e chorei até não ter mais lágrimas. Liguei o rádio só para abafar os meus próprios soluços. Senti-me sozinha como nunca antes.

No hospital, a minha mãe estava cada vez mais fraca. Os olhos dela procuravam-me sempre quando entrava no quarto. — Ana… — murmurava ela, com um sorriso cansado. — Não chores por mim.

Mas eu chorava. Chorava no carro, no duche, na casa de banho do trabalho. Chorava sempre em silêncio.

O Rui começou a chegar tarde a casa. Cheirava a vinho e evitava olhar-me nos olhos. Uma noite, quando finalmente chegou antes da meia-noite, atirou as chaves para cima da mesa e disse:

— Isto não é vida para ninguém. Ou tu escolhes ou eu vou-me embora.

Fiquei ali parada, com as palavras dele a ecoar na minha cabeça. Escolher? Como se fosse possível escolher entre o homem com quem casei e a mulher que me deu a vida.

Nessa noite voltei a rezar. Mas desta vez não pedi nada. Só chorei e falei com Deus como se fosse um velho amigo:

— Não sei o que fazer… Ajuda-me, por favor…

No dia seguinte, fui ao hospital antes do trabalho. A minha mãe estava acordada e parecia melhor. Segurou-me a mão com força surpreendente.

— Ana, não deixes que isto te destrua… — sussurrou ela. — O teu pai precisa de ti. A tua irmã também. E o Rui… ele ama-te.

Senti uma raiva súbita crescer dentro de mim.

— E eu? Quem cuida de mim?

Ela sorriu tristemente.

— Tens de aprender a pedir ajuda, filha…

Saí do hospital com o coração pesado. No trabalho, mal consegui concentrar-me. A minha chefe chamou-me ao gabinete.

— Ana, tens estado distraída… Se precisares de uns dias…

Agradeci-lhe, mas sabia que não podia parar agora. O dinheiro fazia falta em casa dos meus pais e também na nossa casa.

Nessa noite tentei falar com o Rui.

— Preciso de ti… — disse-lhe baixinho enquanto ele lavava os dentes.

Ele olhou-me pelo espelho.

— Agora precisas? E quando eu precisei?

Senti vontade de gritar, de lhe dizer tudo o que me ia na alma: o medo de perder a minha mãe, o peso de ser sempre a filha forte, a solidão de quem cuida de todos menos de si mesma.

Mas calei-me.

Os dias passaram assim: discussões em casa, silêncios pesados ao jantar, telefonemas urgentes do hospital e mensagens da Joana cheias de desespero.

Uma tarde recebi uma chamada do hospital: “Venha depressa.” Corri para lá sem pensar em nada nem em ninguém.

A minha mãe estava pálida como nunca antes. O meu pai segurava-lhe a mão e chorava baixinho. A Joana tremia num canto do quarto.

Sentei-me ao lado dela e rezei outra vez. Desta vez pedi paz para ela e coragem para mim.

Ela partiu nessa noite.

O funeral foi um borrão de rostos conhecidos e desconhecidos, palavras vazias e abraços apertados demais. O Rui esteve lá, mas parecia um estranho ao meu lado.

Depois disso tudo mudou. O meu pai fechou-se ainda mais no seu silêncio. A Joana começou a faltar ao trabalho e ligava-me todas as noites embriagada de tristeza.

O Rui fez as malas duas semanas depois do funeral.

— Não aguento mais viver nesta sombra — disse ele antes de sair pela porta sem olhar para trás.

Fiquei sozinha naquele apartamento cheio de memórias e silêncios ensurdecedores.

Durante semanas vivi como um fantasma: ia trabalhar, visitava o meu pai e tentava segurar a Joana à tona da depressão dela. À noite rezava por todos nós e pedia forças para continuar.

Um dia sentei-me na igreja vazia perto de casa. Não havia missa nem velas acesas; só eu e Deus naquele silêncio pesado.

— Porque é que me tiraste tudo? — perguntei em voz alta, sem esperar resposta.

Mas naquele momento senti uma paz estranha dentro de mim. Como se alguém me dissesse que ainda havia vida depois da dor.

Comecei devagarinho a reconstruir-me: procurei ajuda num grupo de apoio para enlutados; convidei o meu pai para passeios à beira-mar; obriguei a Joana a ir comigo ao médico; voltei a falar com amigas antigas; voltei até a sorrir ao espelho.

O Rui nunca mais voltou. Às vezes penso nele com raiva; outras vezes com saudade do que fomos antes da tempestade.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que chorava sozinha no carro ou rezava no escuro do quarto.

A fé não me devolveu tudo o que perdi, mas deu-me forças para continuar quando tudo parecia perdido.

E vocês? Já sentiram esse vazio? Já tiveram de escolher entre quem amam? Como encontraram forças para continuar quando tudo parecia desabar?