A Felicidade no Silêncio: As Escolhas Inusitadas da Minha Mãe

— Outra vez com essa camisa, mãe? — perguntei, sentindo o nó apertar-se-me na garganta. A camisa azul, desbotada e com um pequeno rasgão na manga, era quase um uniforme para ela. O armário dela, que eu própria ajudara a organizar na semana anterior, estava cheio de vestidos novos, blusas com etiquetas ainda penduradas, casacos que nunca viram a luz do dia. Mas ela insistia naquela camisa e nas calças de linho já gastas.

Ela olhou para mim, os olhos serenos mas firmes. — A felicidade gosta de silêncio, filha. — Disse isto como quem recita uma oração antiga, algo que já não precisa de explicação.

Eu não aguentei. — Mas porquê? O que é que os vizinhos vão pensar? O pai já comentou, a tia Lurdes também. Toda a gente acha estranho! — A minha voz saiu mais alta do que queria.

Ela sorriu, um sorriso triste, e continuou a preparar o café como se nada fosse. O cheiro do café fresco misturava-se com o aroma do pão torrado, mas eu só sentia o peso do silêncio entre nós.

Desde pequena que me lembro da minha mãe assim. Enquanto as outras mães da escola apareciam arranjadas, maquilhadas e com roupas bonitas, a minha era discreta, quase invisível. Nunca ligou a modas nem a opiniões alheias. Mas agora, adulta, sentia vergonha. Vergonha dela e, pior ainda, vergonha de mim por sentir vergonha.

O meu pai era o oposto: vaidoso, sempre bem vestido, preocupado com a imagem da família. As discussões entre eles eram frequentes. — Maria do Céu, custa-te assim tanto vestir-te como uma senhora? — dizia ele, batendo com a mão na mesa. — Não percebo essa mania de te esconderes do mundo!

Ela respondia sempre com calma: — Não me escondo. Só não preciso de mostrar nada a ninguém.

A tia Lurdes era ainda mais cruel. — Olha que as pessoas falam! Parece que passas necessidades! — dizia-lhe ao telefone, enquanto eu fingia não ouvir.

Mas havia mais. A minha mãe evitava festas de família, raramente aceitava convites para sair e passava horas no jardim ou a ler à janela. Eu cresci a sentir que faltava qualquer coisa em casa. Faltava barulho, faltava cor.

Quando fiz 18 anos, decidi confrontá-la de verdade. Esperei até estarmos sozinhas na cozinha, num daqueles fins de tarde em que o sol entra pela janela e pinta tudo de dourado.

— Mãe, tu és feliz assim? Mesmo? — perguntei, tentando não soar acusatória.

Ela pousou o livro que lia e olhou-me nos olhos. — Sou. Mas sei que tu não entendes.

— Não entendo porque parece que te escondes! Parece que tens medo de ser feliz à vista de todos! — explodi.

Ela suspirou fundo. — Quando era pequena como tu, a avó dizia-me sempre para não dar nas vistas. Cresci numa aldeia onde tudo se sabia e tudo se comentava. Aprendi cedo que quem se destaca é alvo de inveja ou maledicência. Quando casei com o teu pai e vi como ele gostava de mostrar tudo o que tinha e era, senti medo. Medo de perder o pouco que tinha conquistado.

Fiquei sem palavras. Nunca tinha pensado nisso. Para mim, mostrar felicidade era natural.

— Mas agora estamos noutra época! Ninguém te vai fazer mal por seres feliz! — insisti.

Ela abanou a cabeça. — Não é medo dos outros, filha. É respeito pelo que tenho. Se gritar aos quatro ventos que sou feliz, parece que estou a desafiar o destino. Prefiro viver em silêncio e agradecer todos os dias pelo que tenho.

As palavras dela ficaram comigo durante anos. Fui para a universidade em Lisboa e tentei afastar-me daquela mentalidade fechada. Fiz amigos novos, comecei a vestir-me como queria e a partilhar tudo nas redes sociais: viagens, festas, conquistas. Sentia-me livre… mas também vazia.

Numa noite chuvosa de novembro recebi uma chamada do meu pai: — A tua mãe está no hospital. Caiu no jardim e partiu o braço.

Voltei à terra natal num comboio apinhado de gente cansada e ansiosa. Quando cheguei ao hospital, vi-a deitada na cama branca, ainda com aquela camisa azul desbotada.

— Ainda bem que vieste — disse ela, sorrindo apesar da dor.

Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão fria. — Desculpa por tudo o que disse…

Ela acariciou-me o rosto com a mão livre. — Não tens de pedir desculpa por quereres entender o mundo à tua maneira. Só te peço que respeites a minha forma de estar.

Nesse momento percebi o peso da herança invisível que carregamos das gerações anteriores: o medo da inveja, o receio do olhar alheio, a crença de que a felicidade deve ser escondida para não ser roubada.

Quando regressámos a casa depois da alta hospitalar, ajudei-a a vestir-se com uma das blusas novas. Ela aceitou por minha causa, mas vi nos olhos dela um desconforto estranho.

— Sentes-te bem? — perguntei.

Ela olhou-se ao espelho e sorriu sem alegria. — Sinto-me mascarada…

Nesse dia percebi finalmente: para ela, vestir-se de forma simples era um ato de liberdade e não de resignação.

O tempo passou e aprendi a aceitar as diferenças entre nós. O meu pai continuou a tentar convencê-la a mudar; a tia Lurdes nunca desistiu dos comentários maldosos; mas eu deixei de julgar.

Hoje sou eu quem repete baixinho: “A felicidade gosta de silêncio.” Não porque tenha medo do mundo ou do futuro, mas porque aprendi que cada um tem o seu próprio modo de ser feliz.

E vocês? Já pensaram no preço que pagam por mostrar ou esconder a vossa felicidade? Será que somos verdadeiramente livres para escolher como queremos viver?