Entre o Silêncio e o Grito: O Meu Nome é Tiago
— Não percebo, Tiago! Não percebo mesmo! — gritava a minha mãe, com os olhos vermelhos de raiva e cansaço. — O teu padrasto é um estranho para ti. Como é que podes escolher viver com ele? Explica-me!
O eco da sua voz ainda ressoava na sala pequena do nosso apartamento em Benfica. Eu tinha 16 anos e sentia-me mais velho do que qualquer adulto à minha volta. O cheiro a café queimado misturava-se com o perfume barato da minha mãe, e eu olhava para o chão, incapaz de a encarar.
— Mãe, eu só quero paz. Aqui já não consigo respirar — murmurei, quase sem voz.
Ela largou a chávena na mesa com força, partindo a asa. O som do vidro a estalar fez-me estremecer. O meu irmão mais novo, o João, apareceu à porta da cozinha, olhos arregalados, como se esperasse que um de nós explodisse de vez.
A verdade é que tudo começou muito antes desse dia. Nasci numa noite de tempestade, em dezembro de 2007. A minha mãe, Mariana, sempre me disse que o trovão daquela noite era um presságio: “Vieste ao mundo a lutar”, dizia ela. O meu pai biológico, Pedro, nunca apareceu no hospital. Cresci a ouvir histórias dele — umas vezes herói, outras vezes vilão — mas nunca o conheci. A minha mãe fazia questão de me lembrar que ele era um erro do qual só eu valia a pena.
Quando eu tinha oito anos, ela conheceu o António. Trabalhava numa pastelaria perto do Rossio, e ele era cliente habitual. Começaram a namorar depressa demais, diziam as vizinhas. Em menos de um ano, ele mudou-se para nossa casa. O António era diferente: calado, metódico, gostava de futebol e detestava discussões. No início, tentei agradar-lhe — via jogos do Benfica com ele, mesmo sem perceber nada das regras. Mas havia sempre uma distância entre nós, como se falássemos línguas diferentes.
A minha mãe mudou também. Tornou-se mais nervosa, mais exigente comigo e com o João. As discussões começaram por coisas pequenas: notas da escola, roupa espalhada pelo chão, pratos por lavar. Mas rapidamente escalaram para gritos sobre dinheiro, traições antigas e promessas quebradas.
Lembro-me de uma noite em particular. Tinha 13 anos e estava no meu quarto a tentar estudar matemática. Ouvi os gritos vindos da sala:
— Achas que isto é vida? Sempre a contar os trocos! — dizia o António.
— Se não gostas, vai-te embora! — respondia a minha mãe.
Ouvia cadeiras a arrastar-se e portas a bater. O João chorava baixinho na cama ao lado da minha. Eu fingia que não ouvia nada, mas por dentro sentia-me a desmoronar.
Com o tempo, comecei a passar mais tempo fora de casa. Ia para o jardim da Praça das Flores ou ficava horas na biblioteca municipal. Fiz amigos novos — alguns bons, outros nem tanto. Comecei a fumar às escondidas e a faltar às aulas. A minha mãe percebeu logo e as discussões tornaram-se ainda piores.
Um dia, depois de mais uma briga feia em casa, fui ter com o António à oficina onde ele trabalhava como mecânico. Não sei bem porquê — talvez porque ele era o único adulto que não gritava comigo. Sentei-me num banco velho e fiquei ali calado.
— O que foi agora? — perguntou ele sem me olhar.
— Não aguento mais lá em casa — respondi.
Ele limpou as mãos sujas de óleo ao avental e suspirou.
— Olha, Tiago… Eu não sou teu pai. Nunca tentei ser. Mas se precisares de um sítio para ficar… há sempre espaço no meu quarto de arrumos.
Foi assim que começou tudo. Passei a ir para lá depois das aulas. Ele não fazia perguntas; eu não dava respostas. Às vezes jantávamos juntos — bifes com batatas fritas ou sopa aquecida no micro-ondas. Falávamos pouco, mas havia silêncio sem gritos.
Quando contei à minha mãe que queria viver com ele durante uns tempos, ela explodiu.
— Preferes um estranho a mim? Depois de tudo o que fiz por ti? — gritava ela.
— Não é isso… Só preciso de espaço — tentei explicar.
— Espaço? Vais ver o que é espaço quando precisares de mim!
O João ficou dividido entre nós dois. Chorava todas as noites e perguntava-me quando voltava para casa. A minha avó materna ligava-me todos os dias:
— Tiago, volta para casa da tua mãe! Ela está a definhar sem ti!
Mas eu não voltava. Pela primeira vez sentia-me livre do peso dos gritos e das acusações constantes.
Os meses passaram devagar. O António continuava distante mas justo. Ajudou-me a encontrar um part-time numa loja de informática e ensinou-me a mudar pneus no fim-de-semana. Comecei a melhorar na escola; até voltei a sorrir de vez em quando.
Mas as coisas não ficaram assim tão simples por muito tempo.
Uma noite, ao chegar à oficina depois do trabalho, encontrei a minha mãe à porta à minha espera. Estava magra, olheiras fundas e cabelo desgrenhado.
— Tiago… preciso falar contigo — disse ela num tom quase suplicante.
Entrámos na oficina vazia e sentámo-nos frente a frente.
— Eu errei contigo — começou ela, com lágrimas nos olhos. — Sempre tive medo de ficar sozinha… E acabei por te afastar.
Fiquei calado. Não sabia o que dizer.
— O António não é teu pai… mas também nunca foi meu inimigo — continuou ela. — Só queria proteger-te… mas acabei por te sufocar.
As palavras dela ficaram suspensas no ar como poeira ao sol da manhã.
— Mãe… eu só queria sentir que tinha escolha — respondi finalmente.
Ela chorou baixinho durante minutos intermináveis. Depois levantou-se e abraçou-me como quando eu era pequeno.
Voltámos para casa juntos nessa noite. O João correu para mim como se eu tivesse estado anos fora. O António ficou à porta da oficina a acenar-nos em silêncio.
A vida não voltou ao normal — porque nunca houve normalidade na nossa família. Mas começámos a falar mais baixo, a ouvir mais uns aos outros. A minha mãe procurou ajuda psicológica; eu continuei a trabalhar e estudar; o João voltou a sorrir sem medo dos gritos.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem assim, presas entre silêncios e gritos? Quantos filhos fogem porque só querem paz? Será possível quebrar este ciclo ou estamos todos condenados a repeti-lo?
E vocês? Já sentiram vontade de fugir só para poderem respirar?