À Sombra da Minha Mãe – O Desmoronar de uma Família Entre Quatro Paredes

— Vais mesmo deixar a tua mãe sozinha na sala outra vez? — A voz do António, o meu marido, ecoou pela cozinha, carregada de impaciência. Eu estava de costas, a lavar a loiça, mas senti o peso do olhar dele nas minhas costas. O som da água a correr era o único refúgio que me restava.

“Se ao menos ele soubesse como me sinto presa”, pensei. Desde que a minha mãe veio viver connosco, há quase um ano, sinto que perdi o controlo da minha própria casa. Não foi uma decisão fácil. O meu irmão, o Carlos, vive no Porto e disse logo que não podia recebê-la. “A mãe sempre gostou mais de ti”, atirou ele ao telefone, como se isso justificasse tudo.

A minha mãe, a Dona Lurdes, sempre foi uma mulher forte. Mas desde que o meu pai morreu, tornou-se mais amarga, mais exigente. No início, achei que era só tristeza. Agora já não sei. Ela critica tudo: a maneira como cozinho, como educo os meus filhos, até a forma como arrumo os pratos.

— A tua filha não sabe fazer arroz — ouvi-a dizer à minha filha mais velha, a Sofia, há dias atrás. — No meu tempo, as raparigas aprendiam cedo.

Senti o rosto da Sofia endurecer. Ela tem 23 anos, acabou o curso de Psicologia e está à procura do primeiro emprego. Já não é uma criança. Mas diante da avó, parece sempre pequena e insegura.

O meu filho mais novo, o Miguel, tem 19 anos e passa os dias fechado no quarto. Diz que está a estudar para os exames da faculdade, mas sei que se refugia nos auscultadores para não ouvir as discussões.

A tensão entre o António e a minha mãe é palpável. Ele tenta ser educado, mas já não tem paciência para as indiretas dela.

— A sopa está salgada — comentou ela num jantar recente.
— Se não gosta, pode fazer você — respondeu ele seco.

O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Eu tentei sorrir e mudar de assunto, mas ninguém me ouviu.

À noite, deito-me ao lado do António e sinto um abismo entre nós. Ele já não me toca como antes. Sei que me culpa por tudo isto.

— Não aguento mais esta situação — disse-me ele uma noite, em voz baixa. — Isto já não é uma casa, é uma prisão.

Chorei em silêncio para não acordar ninguém. Sinto-me dividida entre o dever de filha e o papel de mãe e mulher. Não quero abandonar a minha mãe, mas também não quero perder a minha família.

No domingo passado, tentei um almoço em família. Fiz o prato preferido da minha mãe: bacalhau com natas. A Sofia ajudou-me na cozinha e até o Miguel apareceu à mesa sem ser chamado.

— Está bom — disse a minha mãe, sem entusiasmo.

O António olhou para mim e abanou a cabeça. A Sofia largou os talheres e saiu da mesa. O Miguel ficou calado.

Depois do almoço, fui ter com a Sofia ao quarto.

— Desculpa — disse-lhe eu. — Sei que isto não está fácil para ninguém.
— Mãe, eu adoro a avó, mas ela faz-me sentir inútil — respondeu ela com lágrimas nos olhos. — E tu… tu pareces desaparecer cada vez mais.

Essas palavras ficaram comigo durante dias. Sinto-me invisível na minha própria casa. A minha mãe ocupa todo o espaço: físico e emocional.

Ontem à noite ouvi-a ao telefone com uma amiga:
— A minha filha não sabe impor respeito aos filhos nem ao marido. Se fosse eu…

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que nunca sou suficiente para ela? Porque é que tudo o que faço está sempre errado?

O Carlos ligou-me ontem à tarde.
— Então, como está a mãe?
— Como sempre — respondi seca.
— Olha… se precisares de ajuda financeira para um lar…
— Não! — interrompi-o imediatamente. — Ela não merece isso.

Mas será mesmo assim? Será justo sacrificar tudo por ela? O António já falou em separação. Os meus filhos evitam estar em casa. E eu… eu já nem sei quem sou.

Hoje de manhã encontrei a minha mãe sentada à mesa da cozinha, com um ar perdido.
— Sentes-te bem? — perguntei-lhe.
Ela olhou para mim com olhos cansados.
— Sinto-me sozinha aqui…

Fiquei sem palavras. Como pode ela sentir-se sozinha se ocupa tudo?

À noite sentei-me com o António na sala.
— Não podemos continuar assim — disse-lhe eu finalmente. — Preciso de ajuda para decidir o que fazer.
Ele olhou para mim com tristeza.
— Eu amo-te. Mas também preciso de ti… Preciso da mulher com quem casei.

Fui ao quarto da Sofia e sentei-me na cama dela.
— O que achas que devo fazer?
Ela abraçou-me em silêncio.

Agora estou aqui, sozinha na cozinha, a olhar para as paredes que já não reconheço como minhas. Sinto-me perdida entre o passado e o presente, entre o dever e o amor próprio.

Será possível salvar uma família sem nos perdermos a nós próprios? Quantos sacrifícios são justos antes de deixarmos de ser quem somos?