“Tens um mês para sair de casa”: O dia em que a minha mãe nos expulsou

“Tens um mês para sair de casa.”

As palavras da minha mãe, Teresa, ecoaram pela cozinha fria como uma sentença. Eu estava sentada à mesa, com a chávena de chá ainda quente entre as mãos trémulas. A minha irmã, Inês, olhou para mim com os olhos arregalados, como se esperasse que eu dissesse alguma coisa, qualquer coisa que pudesse desfazer aquele momento. Mas eu não consegui. O silêncio caiu sobre nós como uma cortina pesada.

“Ouviram o que disse?” insistiu a minha mãe, a voz mais dura do que nunca. “Preciso de estar sozinha. Isto já não é vida para mim.”

A Inês foi a primeira a reagir. “Mas mãe… Como assim? Para onde é que vamos?”

“Vocês já são crescidas. Arranjem-se. Eu já fiz a minha parte.”

Eu queria gritar, queria perguntar-lhe se ela se lembrava das noites em que ficava acordada à nossa espera, das vezes em que nos fazia sopa quando estávamos doentes, dos Natais em que dizia que éramos tudo para ela. Mas fiquei calada. Senti-me pequena, como se tivesse voltado a ser aquela menina de oito anos que tinha medo do escuro e só adormecia com a mão da mãe na testa.

A Inês levantou-se abruptamente e saiu da cozinha. Ouvi a porta do quarto bater com força. Fiquei ali, sozinha com a minha mãe, sem saber o que fazer às mãos nem ao coração.

“Mãe…”, tentei começar, mas ela interrompeu-me.

“Não quero discutir mais. Já decidi.”

Levantei-me devagar e fui ter com a Inês. Encontrei-a sentada na cama, a chorar baixinho.

“Ela não pode fazer isto”, sussurrou. “Nós não temos para onde ir.”

Sentei-me ao lado dela e abracei-a. “Vamos arranjar uma solução. Temos um mês.”

Mas por dentro eu estava tão perdida quanto ela.

Os dias seguintes foram um pesadelo. A casa tornou-se um campo de batalha silencioso. A minha mãe evitava-nos, passava horas fechada no quarto ou saía sem dizer para onde ia. Eu e a Inês passávamos as noites a fazer contas à vida: quanto dinheiro tínhamos, quem nos podia ajudar, onde poderíamos ficar.

O meu pai tinha-nos deixado quando eu tinha dez anos. Desde então, éramos só nós as três. Sempre pensei que, apesar das discussões e dos silêncios, éramos uma família unida pelo menos no essencial. Agora percebia que estava enganada.

Uma noite, depois de mais uma discussão abafada com a minha mãe sobre contas e responsabilidades, fui dar uma volta pelo bairro. Senti o ar frio na cara e tentei não chorar. Lembrei-me da primeira vez que caí da bicicleta e da forma como a minha mãe me pegou ao colo, limpou o sangue do joelho e disse: “Enquanto eu cá estiver, nada te vai faltar.” Onde estava essa mãe agora?

No trabalho, comecei a chegar atrasada. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu sorria, fingindo normalidade. Só a Ana, a minha amiga de sempre, percebeu que algo não batia certo.

“Queres vir cá jantar hoje?” perguntou ela num desses dias.

Acabei por lhe contar tudo. Ela ouviu-me em silêncio e depois disse: “Podes ficar lá em casa uns tempos, se precisares.”

Agradeci-lhe, mas sabia que não era assim tão simples. A Inês ainda estava na faculdade e trabalhava num café ao fim de semana; eu tinha um contrato precário numa loja de roupa. Alugar uma casa era quase impossível com o dinheiro que tínhamos.

Uma noite, depois do jantar, sentei-me com a minha mãe na sala. Ela estava a ver televisão, mas percebi que não estava realmente a ver nada.

“Mãe… Porquê agora?” perguntei baixinho.

Ela suspirou e olhou para mim com olhos cansados.

“Estou cansada, Mariana. Cansada de ser sempre eu a resolver tudo. Preciso de pensar em mim pela primeira vez.”

“Mas nós somos tuas filhas…”

“E vocês vão continuar a ser minhas filhas. Mas têm de aprender a viver sozinhas.”

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. “Aprender? Ou ser empurradas para fora?”

Ela não respondeu.

Os dias passaram depressa demais. Eu e a Inês começámos a empacotar as nossas coisas em caixas velhas de supermercado. Cada objeto parecia pesar toneladas: fotografias de infância, cartas antigas do pai, livros escolares cheios de anotações.

Um sábado à tarde, enquanto arrumávamos o sótão, encontrámos uma caixa cheia de brinquedos antigos. A Inês pegou num urso de peluche já sem um olho e começou a rir-se entre lágrimas.

“Lembras-te disto? Era o meu preferido.”

Sorri-lhe tristemente. “Acho que foi o único amigo fiel que tiveste durante anos.”

Ela abraçou-me com força. “Vamos ficar bem?”

“Vamos”, menti.

Na última semana antes de sairmos, tentei falar com a minha mãe mais uma vez. Queria perceber se havia alguma coisa que pudéssemos fazer para mudar aquela decisão.

“Mãe… Não podemos tentar outra vez? Ficar juntas?”

Ela abanou a cabeça devagar.

“Já tomei a decisão, Mariana. Preciso deste espaço para mim.”

No dia em que saímos de casa, chovia torrencialmente. Eu e a Inês carregámos as caixas até ao carro da Ana, que nos veio ajudar. A minha mãe ficou à porta, sem dizer nada. Por um momento pensei que ela ia chamar-nos de volta, pedir desculpa, dizer que tudo não passava de um erro terrível.

Mas ela apenas acenou com a cabeça e fechou a porta atrás de nós.

Durante semanas senti-me à deriva. Dormíamos no sofá-cama da Ana e tentávamos encontrar trabalho melhor para conseguir pagar um quarto só nosso. A Inês chorava quase todas as noites; eu fingia ser forte por ela.

Às vezes sonhava com a nossa casa: o cheiro do café pela manhã, o som da chuva nas janelas do sótão, os risos partilhados à mesa do pequeno-almoço antes de tudo desabar.

Um dia recebi uma mensagem da minha mãe: “Espero que estejam bem.” Só isso. Não respondi.

Passaram-se meses até conseguirmos alugar um pequeno quarto numa casa partilhada em Benfica. Não era muito — paredes finas, vizinhos barulhentos — mas era nosso.

Aos poucos fui percebendo que talvez nunca voltássemos a ser família como antes. Que havia feridas demasiado fundas para sarar só com o tempo.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será que alguma vez fomos realmente uma família? Ou apenas três pessoas presas pelas circunstâncias?

E vocês? Acham que há decisões na vida das quais nunca conseguimos recuperar? O amor de mãe tem limites ou apenas formas diferentes de se mostrar?