Quando a Casa Deixa de Ser um Lar: Entre a Nora e a Filha
— Não é assim que se faz, Inês! Já te disse mil vezes que o arroz precisa de mais água! — ouvi-me dizer, a voz embargada, enquanto via a minha nora mexer distraidamente na panela. Ela nem sequer olhou para mim. Limitou-se a suspirar, aquele suspiro que me atravessa como uma faca, e continuou a mexer o arroz como se eu não estivesse ali.
Desde que o meu filho, o Pedro, casou com a Inês e vieram morar cá em casa, sinto-me uma estranha na minha própria cozinha. No início, pensei que seria temporário — só até arranjarem casa, diziam eles. Mas os meses passaram, depois os anos, e eu fui ficando cada vez mais invisível. O Pedro trabalha horas sem fim no escritório e, quando chega, mal me cumprimenta antes de se fechar no quarto com a Inês. E eu fico ali, entre tachos e panelas, a tentar encontrar o meu lugar.
Lembro-me de quando esta casa era cheia de vozes — as gargalhadas do Pedro e da Ana, a minha filha mais velha, as discussões sobre quem ficava com o último pedaço de bolo, o cheiro do café acabado de fazer nas manhãs de domingo. Agora, tudo parece frio. Até o relógio da sala parece bater mais devagar.
— Maria do Carmo, não se preocupe — disse-me a Inês um dia, com aquele tom polido que me irrita tanto — Eu trato do jantar hoje. Pode ir descansar.
Descansar? Como se eu conseguisse descansar com o coração apertado desta maneira. Fui para o meu quarto e fechei a porta devagarinho. Sentei-me na cama e olhei para as fotografias antigas na cómoda: eu e o António no nosso casamento; os miúdos na praia da Nazaré; a Ana com as tranças desfeitas e o Pedro com os joelhos esfolados. O António partiu há cinco anos. Desde então, tenho tentado manter a família unida, mas sinto que estou a perder tudo.
Uma noite, ouvi-os discutir no corredor.
— Não aguento mais! — sussurrou a Inês, julgando que eu não ouvia — A tua mãe está sempre em cima de mim! Não posso fazer nada sem ela criticar!
— Tem paciência — respondeu o Pedro, cansado — Ela só quer ajudar.
— Não quero ajuda! Quero espaço!
Fiquei ali, atrás da porta entreaberta, com as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Senti-me um peso. Uma intrusa na minha própria casa.
No dia seguinte, decidi procurar a Ana. Talvez ela me compreendesse. Liguei-lhe várias vezes até que finalmente atendeu.
— Mãe? Está tudo bem?
— Ana… preciso de falar contigo. Sentes-te bem se eu for aí passar uns dias?
Do outro lado ouvi um silêncio desconfortável.
— Oh mãe… agora não é boa altura. O Miguel está cheio de trabalho e as miúdas têm testes… Talvez noutra altura?
A voz dela era distante, quase fria. Senti-me rejeitada. Como é possível que os meus próprios filhos não tenham tempo para mim? Onde foi que errei?
Voltei para casa cabisbaixa. A Inês estava sentada à mesa da cozinha com o computador aberto e nem levantou os olhos quando entrei.
— Precisa de alguma coisa? — perguntou mecanicamente.
— Não… nada…
Sentei-me no sofá da sala e liguei a televisão só para ouvir algum barulho. Mas nem isso me consolava. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim — raiva da Inês por me ter roubado o filho, raiva da Ana por me virar as costas, raiva do António por me ter deixado sozinha neste mundo tão vazio.
Os dias foram passando assim: eu a tentar ajudar e eles a afastarem-se cada vez mais. Um domingo à tarde, ouvi o Pedro e a Inês conversarem baixinho no quarto.
— Temos de sair daqui — dizia ela — Não aguento mais viver com a tua mãe.
— Não temos dinheiro suficiente para alugar nada agora…
— Então arranja! Ou eu vou sozinha!
O medo apoderou-se de mim. E se eles fossem mesmo embora? Fiquei horas sentada à mesa da cozinha, olhando para as mãos trémulas. O que seria de mim sem eles? Mas depois pensei: será que não seria melhor assim? Talvez eu pudesse finalmente respirar sem sentir que estou sempre no caminho.
Na segunda-feira seguinte, decidi sair cedo e ir ao mercado. Pelo menos ali ainda conheciam o meu nome.
— Bom dia, Dona Maria do Carmo! Hoje quer laranjas ou maçãs? — perguntou a D. Rosa da banca das frutas.
— Laranjas… para fazer sumo para o Pedro — respondi automaticamente.
Ela sorriu com pena nos olhos. Toda a gente sabia da minha situação. Numa terra pequena como esta, os segredos não duram muito tempo.
Quando voltei para casa, encontrei a Ana à porta com as duas filhas pequenas.
— Mãe… podemos falar?
O coração bateu-me descompassado. Talvez finalmente ela tivesse percebido como eu precisava dela.
Sentámo-nos na sala enquanto as miúdas brincavam no tapete.
— Mãe… tens de perceber que as coisas mudaram. O Pedro tem uma família agora. Tu tens de lhes dar espaço.
— E eu? Onde fico eu nisto tudo?
Ela suspirou.
— Tens de encontrar coisas para ti. Um passatempo… amigos…
Senti-me traída. Depois de uma vida inteira dedicada aos meus filhos, agora dizem-me para arranjar um passatempo? Para me entreter enquanto eles vivem as suas vidas?
As lágrimas vieram sem aviso.
— Eu só queria sentir que ainda faço parte da vossa vida…
A Ana abraçou-me rapidamente, mas senti que era um abraço apressado, quase por obrigação.
Depois disso, fechei-me ainda mais em mim mesma. Passei dias inteiros sem falar com ninguém. O Pedro começou a chegar cada vez mais tarde a casa; a Inês evitava cruzar-se comigo nos corredores; até as netas da Ana pareciam desconfortáveis quando vinham cá.
Uma noite, sentei-me à mesa da cozinha com uma folha de papel à frente. Escrevi uma carta ao António:
“Meu querido,
Sinto tanto a tua falta. Não sei como continuar sem ti. Os nossos filhos cresceram e já não precisam de mim. A casa está cheia de gente mas sinto-me tão sozinha como nunca estive antes. Será isto o destino das mães? Serem esquecidas quando já deram tudo?”
Guardei a carta na gaveta e fui dormir com o peito apertado.
No dia seguinte, tomei uma decisão: ia procurar ajuda fora da família. Inscrevi-me numa aula de bordados na Junta de Freguesia. No início sentia-me deslocada entre as outras senhoras — todas elas pareciam ter vidas tão diferentes da minha — mas aos poucos fui encontrando algum consolo nas conversas sobre receitas antigas e novelas da televisão.
Certa tarde, ao regressar da aula, encontrei um bilhete do Pedro:
“Mãe,
Eu e a Inês vamos sair daqui a dois meses. Arranjámos um apartamento pequeno perto do trabalho dela. Sei que vai ser difícil para ti mas precisamos deste espaço para crescermos como família.
Beijo,
Pedro”
Li e reli aquelas palavras até as letras se desfazerem nos meus olhos marejados de lágrimas. Era o fim de uma era — mas talvez também o início de outra coisa qualquer.
Na noite em que eles saíram definitivamente de casa, sentei-me sozinha na sala vazia. O silêncio era ensurdecedor mas já não me doía tanto como antes. Peguei no telefone e liguei à Ana:
— Filha… desculpa se alguma vez te fiz sentir pressionada ou sufocada. Só queria sentir que ainda faço parte da vossa vida.
Do outro lado ouvi um suspiro longo.
— Mãe… vamos tentar passar mais tempo juntas, está bem?
Desliguei com um sorriso triste mas sincero nos lábios.
Agora passo os dias entre bordados e passeios pelo jardim público. Ainda sinto falta do barulho dos filhos em casa mas aprendi que também mereço espaço para mim própria.
E às vezes pergunto-me: será este o destino inevitável das mães portuguesas? Dedicarmo-nos tanto aos outros que acabamos por perder-nos de nós mesmas? Será possível reconstruir um lar dentro do nosso próprio coração?