O telefonema que desfez o meu lar: Entre a minha mãe e a minha mulher, perdi-me a mim mesmo
— O que é que ela está aqui a fazer, Miguel? — A voz da Inês cortou o silêncio da sala como uma lâmina. O cheiro do café acabado de fazer, que normalmente enchia a casa de aconchego, parecia agora azedo, misturado com a tensão que pairava no ar.
A minha mãe, Dona Teresa, estava sentada no sofá, com a minha filha Leonor nos braços. O sorriso dela congelou-se quando ouviu a pergunta da nora. Eu, parado entre as duas mulheres mais importantes da minha vida, senti-me pequeno, quase invisível.
— Inês, eu só achei… — comecei, mas ela interrompeu-me com um olhar que me fez recuar dois passos.
— Achaste o quê? Que podias decidir sozinho quem entra nesta casa? Depois de tudo o que aconteceu? — A voz dela tremia, não de medo, mas de raiva contida.
A minha mãe pousou Leonor no berço e levantou-se devagar. — Eu só queria conhecer a minha neta. Não quero problemas…
Inês riu-se, um riso seco e amargo. — Problemas? Dona Teresa, problemas foi o que sempre trouxe à nossa vida! — E virou-se para mim: — E tu, Miguel? Depois de tudo o que passámos, ainda achas que podes esconder coisas de mim?
O silêncio caiu pesado. Senti o suor frio escorrer-me pelas costas. Lembrei-me do telefonema da noite anterior. A minha mãe ligou-me tarde, com aquela voz cansada mas cheia de esperança:
— Miguelinho, já passaram três meses desde que a Leonor nasceu… Não achas que já posso conhecê-la? Eu prometo que não digo nada à Inês…
Hesitei. Sabia que Inês ainda não tinha perdoado certas coisas do passado. A minha mãe sempre foi difícil — crítica, controladora, incapaz de aceitar que eu tinha escolhido uma mulher diferente do que ela sonhara para mim. Mas era a minha mãe. E agora estava sozinha, depois do meu pai ter morrido há dois anos.
— Vem amanhã de manhã — disse-lhe baixinho. — Mas tens de ir embora antes da Inês chegar do supermercado.
O plano parecia simples. Mas nada na minha família alguma vez foi simples.
Quando Inês entrou em casa mais cedo do que o previsto e encontrou a minha mãe ali, tudo desabou. As palavras começaram a voar como facas:
— Sempre foste assim, Miguel! Incapaz de te impôr à tua mãe! — gritava Inês.
— Não fales assim comigo! — respondeu a minha mãe, com os olhos húmidos. — Eu só quero fazer parte da vida do meu neta!
— À custa da minha sanidade? Depois de tudo o que me disseste quando casei com o seu filho? Depois de me chamares de interesseira e dizeres que eu nunca seria suficiente?
Eu tentei intervir, mas cada palavra minha era ignorada ou usada contra mim. Senti-me um menino outra vez, dividido entre os gritos da minha mãe e as lágrimas da minha mulher.
A discussão prolongou-se durante horas. Vieram à tona todas as mágoas: as críticas veladas da minha mãe ao modo como Inês cuidava da casa; as vezes em que Inês me pediu para pôr limites e eu fugi ao confronto; os Natais passados em silêncio porque ninguém queria ceder.
No fim do dia, a minha mãe saiu sem dizer adeus. Inês trancou-se no quarto com Leonor e eu fiquei sozinho na sala, rodeado por fotografias de família que agora pareciam troféus de batalhas perdidas.
Os dias seguintes foram um inferno. Inês mal me falava. A minha mãe ligava-me todos os dias a chorar:
— Foste tu quem me pediu para vir! Agora sou eu a má da fita?
No trabalho, não conseguia concentrar-me. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu respondia com um sorriso falso. À noite, olhava para Leonor a dormir e perguntava-me se algum dia ela iria perceber este nó impossível entre as mulheres da nossa família.
Uma semana depois, tentei falar com Inês:
— Desculpa. Eu só queria que as coisas fossem diferentes…
Ela olhou para mim com olhos vermelhos de tanto chorar:
— Tu nunca escolheste por nós. Sempre escolheste por ela ou por ti. E agora? Vais continuar a esconder coisas?
Não soube responder. Senti-me esmagado pelo peso das expectativas: ser um bom filho, um bom marido, um bom pai. Mas como se faz isso quando cada escolha parece trair alguém?
A relação entre Inês e a minha mãe nunca recuperou. Os encontros tornaram-se raros e tensos. Eu tornei-me um estranho na minha própria casa, sempre à espera do próximo conflito.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se tivesse tido coragem de enfrentar a verdade desde o início? Ou será que há feridas familiares que nunca saram?
Será possível amar duas pessoas em guerra sem nos perdermos pelo caminho? O que fariam vocês no meu lugar?