O dia em que percebi que era invisível para a minha mãe

— Não é justo, mãe! — gritei, com a voz embargada, enquanto as lágrimas ameaçavam cair. O silêncio pesado da sala parecia esmagar-me. A minha irmã Inês olhava para mim, surpresa, quase ofendida, como se eu tivesse dito algo absurdo. A minha mãe, sentada no sofá, desviou o olhar para a chávena de chá, evitando encarar-me.

Desde pequena, sempre fui a filha que não pedia nada. A Inês era a que fazia birras, exigia presentes, chorava até conseguir o que queria. Eu, pelo contrário, aprendi cedo a calar as minhas vontades. Talvez porque via a minha mãe tão cansada, sozinha a criar-nos depois do divórcio, sempre a correr entre dois empregos. Não queria ser mais um peso.

Mas naquele dia, ao saber que a minha mãe tinha dado à Inês vinte mil euros para comprar casa, senti algo a partir-se dentro de mim. Não era inveja do dinheiro, era o que ele representava: a confirmação de que, para a minha mãe, eu era menos importante. Menos digna de amor, de cuidado, de atenção.

— Filha, não é assim… — começou ela, mas a voz saiu-lhe fraca, quase um sussurro.

— Então explica-me! — insisti, sentindo o peito apertado. — Porque é que a Inês merece e eu não? Eu também preciso de ajuda! Ou achas que a minha vida é fácil?

A Inês bufou, cruzando os braços. — Sempre foste a preferida, Leonor. A mãe só me ajudou porque eu pedi. Tu nunca pedes nada, como é que ela há de saber?

— Isso não é verdade! — rebati, sentindo o sangue ferver-me nas veias. — Só porque não faço escândalos, não significa que não precise. Só porque sou mais calada, não significa que não sinta!

A minha mãe levantou-se, aproximou-se de mim e pousou-me a mão no ombro. O gesto, em vez de me acalmar, fez-me sentir ainda mais sozinha.

— Leonor, tu sempre foste tão independente… Achei que não precisavas. A Inês está numa situação complicada, sabes disso. O Pedro deixou-a, está sozinha com o miúdo…

— E eu? — interrompi, a voz a tremer. — Eu também estou sozinha. Trabalho horas a fio, mal tenho dinheiro para pagar a renda. Nunca te ocorreu perguntar se eu precisava de ajuda?

O silêncio voltou a instalar-se. A Inês olhava para o telemóvel, fingindo desinteresse, mas eu sabia que estava atenta a cada palavra. A minha mãe suspirou, sentando-se de novo.

— Não sei o que dizer… — murmurou. — Sinto muito, filha. Não pensei que te magoasse.

Saí da sala, bati com a porta do quarto e deixei-me cair na cama. O choro veio em ondas, incontrolável. Senti-me ridícula, uma criança a fazer birra por não receber um brinquedo. Mas não era isso. Era o peso de anos a engolir mágoas, a ser a filha “forte”, a que não dá trabalho.

Lembrei-me de todas as vezes em que fiquei em segundo plano. Quando era miúda e a Inês partia um copo, era eu que ajudava a limpar. Quando havia discussões, era eu que fazia de mediadora. Quando a mãe estava doente, era eu que fazia o jantar. Sempre fui a filha “boa”, a que não dá problemas. E, no fim, era como se isso me tornasse invisível.

Naquela noite, não consegui dormir. Oiço a Inês a sair para ir fumar à varanda, oiço a mãe a chorar baixinho na cozinha. Sinto-me culpada, mas também revoltada. Porque é que tenho de ser sempre eu a ceder? Porque é que o amor da minha mãe parece ter um preço?

No dia seguinte, evitei o pequeno-almoço. Saí cedo para o trabalho, mas a cabeça não estava lá. Os colegas perguntaram se estava tudo bem, mas limitei-me a sorrir. Ninguém imagina o que é sentir que não se é suficiente nem para a própria mãe.

Ao fim do dia, recebi uma mensagem da mãe: “Podemos falar?”. Ignorei. Não queria ouvir desculpas, nem justificações. Queria que, pela primeira vez, alguém olhasse para mim e visse a dor que eu escondia.

Os dias passaram. Em casa, o ambiente era insuportável. A Inês fazia questão de mostrar que estava de bem com a vida, mas eu via-lhe o olhar de culpa. A mãe andava calada, a tentar agradar-me com pequenos gestos: o meu prato favorito ao jantar, um bolo caseiro, um beijo na testa antes de sair. Mas nada disso apagava o que sentia.

Uma noite, depois do jantar, a mãe sentou-se ao meu lado no sofá. Ficámos em silêncio durante minutos. Finalmente, ela falou:

— Leonor, sei que errei. Não devia ter feito distinções. Mas acredita, nunca foi por gostar mais da tua irmã. Só queria ajudar quem mais precisava naquele momento. Mas percebo agora que tu também precisas. E que, talvez, eu nunca tenha sabido ver isso.

Olhei para ela, os olhos marejados. — Não quero o dinheiro, mãe. Só queria sentir que sou importante para ti. Que vês o que faço, o que sinto…

Ela abraçou-me, apertado. — És tudo para mim, filha. Só sou humana, às vezes erro. Mas amo-te, amo-vos às duas. Não deixes que isto nos separe.

Chorei no seu ombro, como há anos não fazia. Senti um alívio, mas também uma tristeza profunda. Porque sabia que nada ia mudar o passado. E que, por mais que dissesse que me amava, havia uma ferida que ia demorar a sarar.

Nos dias seguintes, tentei perdoar. A mãe esforçava-se por ser mais justa, mais atenta. A Inês pediu-me desculpa, disse que nunca quis magoar-me. Mas a relação entre nós ficou diferente, mais distante. Percebi que, às vezes, as famílias magoam-se sem querer. E que o amor nem sempre é suficiente para curar tudo.

Hoje, olho para trás e pergunto-me: será que alguma vez vou deixar de sentir esta diferença? Será que o amor de mãe pode mesmo ser dividido de forma justa? Ou será que, no fundo, todos somos um pouco invisíveis para quem mais amamos?