O Dia em que a Minha Mãe Quase Destruiu o Meu Casamento
— Outra vez sopa, Inês? — perguntou o Rui, largando a colher na mesa com um estrondo que me fez estremecer.
Senti o rosto a arder. Não era a sopa, era tudo o resto. O silêncio entre nós, as palavras não ditas, o peso de uma casa que já não era lar. Mas calei-me, como sempre. Tinha medo que tudo o que dissesse soasse a crítica, a julgamento. O Rui era bom homem, trabalhador, mas ultimamente parecia sempre irritado, distante. E eu… eu sentia-me sozinha, mesmo com ele ao meu lado.
A minha mãe ligava-me todos os dias. “Inês, não deixes o Rui fazer isto”, “Inês, tens de ser mais firme”, “Inês, se fosses como eu no meu tempo…”. Eu ouvia, suspirava e tentava mudar de assunto. Mas ela insistia, sempre com aquele tom de quem sabe tudo, de quem acha que só ela tem razão. Eu não queria magoá-la, mas também não queria viver à sombra das opiniões dela.
Uma noite, depois de mais uma discussão por causa de um prato mal lavado, sentei-me na cama e chorei baixinho. O Rui dormia já, ou fingia dormir. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha mãe: “Mãe, preciso de espaço. Por favor, deixa-me viver a minha vida.” Apaguei antes de enviar. Não queria magoá-la. Não queria criar mais problemas.
No dia seguinte, fui trabalhar com olheiras e o coração apertado. A minha colega Filipa olhou para mim e disse:
— Estás bem? Pareces tão em baixo…
Quase lhe contei tudo ali mesmo, mas engoli as lágrimas e sorri. “Estou só cansada.” Era mais fácil assim.
Quando cheguei a casa, encontrei o Rui sentado à mesa da cozinha com um papel na mão. Olhou para mim com um olhar que nunca lhe tinha visto antes — magoado, desconfiado.
— A tua mãe esteve aqui hoje — disse ele, a voz tensa. — Disse-me que eu não te valorizo, que te faço sofrer.
O chão fugiu-me dos pés.
— O quê? Ela disse-te isso?
Ele atirou o papel para cima da mesa. Era uma carta da minha mãe, escrita à mão. “Rui, se amas a minha filha, trata-a como ela merece. Não admito que a faças infeliz.”
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Como pôde ela? Como pôde meter-se assim na nossa vida?
— Eu não pedi nada disto — disse-lhe, quase a gritar. — Eu nunca lhe disse nada!
O Rui levantou-se bruscamente.
— Pois parece que ela sabe tudo o que se passa aqui dentro! Ou será que tu lhe contas tudo?
— Não! — gritei eu, as lágrimas a correrem-me pelo rosto. — Eu nunca lhe disse nada! Só… só desabafo às vezes…
Ele abanou a cabeça e saiu de casa sem dizer mais nada.
Fiquei ali sozinha, com a carta na mão e o coração despedaçado. Liguei à minha mãe.
— Mãe, como pudeste fazer isto?
Do outro lado ouvi o suspiro dela.
— Inês, eu só quero o teu bem. Não suporto ver-te infeliz.
— Mas tu não sabes nada! Não tinhas o direito!
Ela ficou em silêncio. Depois disse:
— Um dia vais perceber que as mães só querem proteger as filhas.
Desliguei sem dizer mais nada.
Os dias seguintes foram um inferno. O Rui quase não me falava. Dormíamos de costas voltadas. A minha mãe continuava a ligar-me todos os dias, mas eu deixava tocar até ir para o voicemail.
No trabalho, a Filipa percebeu que algo estava errado.
— Inês, tens de falar com alguém. Não podes guardar isso tudo para ti.
Chorei no ombro dela pela primeira vez em anos.
— A minha mãe está a destruir o meu casamento e eu nem consigo olhar para ela — confessei-lhe.
Ela apertou-me a mão.
— Tens de pôr limites. Por ti e pelo Rui.
Nessa noite esperei pelo Rui na sala. Quando ele chegou, sentei-me ao lado dele no sofá.
— Rui… precisamos de conversar.
Ele olhou para mim com olhos cansados.
— Achas que ainda vale a pena?
O meu coração partiu-se outra vez.
— Eu amo-te — disse-lhe baixinho. — Mas não posso continuar assim. A minha mãe… ela ultrapassou todos os limites. Eu vou falar com ela. Mas preciso que tu confies em mim.
Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois pegou na minha mão.
— Eu também te amo. Mas isto não pode continuar assim.
No dia seguinte fui ter com a minha mãe. Ela abriu-me a porta com aquele sorriso de sempre, mas eu não consegui sorrir de volta.
— Mãe, chega — disse-lhe logo à entrada. — Não podes continuar a meter-te na minha vida assim. O Rui é meu marido, é comigo que tenho de resolver as coisas.
Ela ficou chocada, quase ofendida.
— Eu só quero ajudar!
— Mas não estás a ajudar! Estás a destruir tudo! — gritei-lhe finalmente tudo o que tinha guardado durante anos.
Ela chorou. Eu chorei também. Saí dali sem olhar para trás.
Durante semanas não consegui falar com ela. O Rui e eu começámos devagarinho a reconstruir o nosso casamento — conversas longas à noite, passeios ao fim de semana sem telemóveis por perto, jantares em silêncio mas juntos.
A minha mãe continuou a ligar-me todos os dias durante algum tempo, mas eu precisava de espaço para sarar as feridas. Só muito tempo depois consegui voltar a olhar para ela sem sentir raiva ou tristeza.
Hoje ainda me dói pensar em tudo o que aconteceu. Pergunto-me muitas vezes: será possível perdoar quem nos magoa mesmo quando só quer o nosso bem? E até onde devemos deixar os nossos pais interferirem nas nossas vidas? Gostava de saber como vocês lidariam com isto…