O Dia em Que a Minha Mãe Caiu e o Mundo Parou

— Filha, ajuda-me… caí e não me consigo levantar. — A voz da minha mãe, trémula e abafada, ecoava no telemóvel. O coração disparou-me no peito, as mãos começaram a suar. Não era a primeira vez que ela me ligava aflita, mas nunca assim. Senti o chão fugir-me dos pés.

Estava sentada na sala, a tentar terminar um relatório para o trabalho, quando o telemóvel vibrou. Vi a mensagem: “Preciso de ajuda. Caí.” O mundo parou. A minha mãe, Maria do Carmo, sempre foi uma mulher forte, daquelas que nunca se queixam. O simples facto de pedir ajuda já era sinal de que algo estava mesmo errado.

— Onde estás? — perguntei, tentando manter a voz firme.

— No corredor… fui buscar um copo de água e escorreguei. Não consigo mexer a perna. — A respiração dela era entrecortada.

Levantei-me de um salto, agarrei nas chaves e saí porta fora. Moro a vinte minutos de carro da casa dela, em Almada. O trânsito parecia gozar comigo, cada semáforo vermelho era uma tortura. Liguei ao meu irmão, Rui, mas ele não atendeu. Liguei outra vez. Nada.

Na minha cabeça, as perguntas atropelavam-se: E se ela partiu a anca? E se está a perder sangue? E se desmaia antes de eu chegar? Senti-me culpada por não morar mais perto, por não ter convencido a minha mãe a vir viver comigo depois do meu pai morrer.

Quando finalmente cheguei ao prédio dela, corri pelas escadas acima, tropeçando nos degraus. A porta estava destrancada. Entrei e vi-a estendida no chão, o rosto pálido, os olhos marejados de lágrimas.

— Mãe! — ajoelhei-me ao lado dela.

— Não te preocupes… só dói muito — murmurou.

Tentei acalmá-la enquanto ligava para o 112. A senhora do outro lado da linha fez-me perguntas rápidas: “Ela está consciente? Respira bem? Vê sangue?” Respondi como pude, sentindo-me inútil por não saber mais.

Enquanto esperávamos pela ambulância, tentei distrair a minha mãe:

— Lembras-te daquela vez em que caíste da bicicleta e disseste ao pai que tinhas tropeçado num cão?

Ela sorriu, mas logo se contorceu de dor.

— Não te preocupes comigo… já sou velha para estas coisas — disse ela, tentando brincar.

— Não digas disparates! — respondi, zangada com ela e comigo mesma.

A ambulância chegou em menos de quinze minutos, mas pareceram horas. Os bombeiros foram cuidadosos, imobilizaram-lhe a perna e levaram-na para o hospital Garcia de Orta. Fui atrás no meu carro, com as mãos a tremer tanto que mal conseguia segurar no volante.

No hospital, as horas arrastaram-se entre exames e esperas intermináveis. O Rui apareceu finalmente, esbaforido e cheio de desculpas:

— Desculpa, estava em reunião… não vi as chamadas.

Olhei para ele com raiva e alívio ao mesmo tempo. Sempre fui eu a resolver tudo na família desde que o pai morreu. O Rui é bom rapaz, mas vive noutro mundo.

O médico veio ter connosco:

— A sua mãe partiu o fémur. Vai precisar de cirurgia.

Senti um nó na garganta. A minha mãe parecia tão frágil na maca, tão diferente da mulher que sempre foi o pilar da nossa família.

Depois da cirurgia, os dias seguintes foram um turbilhão: fisioterapia, visitas ao hospital, discussões com o Rui sobre quem ficava com ela à noite. A minha vida virou do avesso. O trabalho ficou para segundo plano; os amigos deixaram de me ver; até o meu namorado começou a afastar-se.

Uma noite, já em casa dela depois de mais um dia exaustivo, sentei-me ao lado da minha mãe na cama improvisada na sala.

— Desculpa ter-te dado tanto trabalho — disse ela baixinho.

— Não digas isso! — respondi, mas por dentro sentia-me exausta e zangada com tudo: com ela por não aceitar ajuda antes; comigo por não conseguir fazer mais; com o Rui por não perceber o peso que eu carregava.

Nessa noite discutimos:

— Sempre foste tu a preferida! — atirou o Rui num acesso de frustração.

— Preferida? Ou simplesmente a única que está sempre disponível? — respondi eu, cansada.

A minha mãe chorou em silêncio enquanto nós discutíamos. Senti-me horrível.

Os dias passaram e comecei a perceber como tudo mudou: a casa dela encheu-se de barras de apoio; as conversas passaram a girar à volta de medicamentos e consultas; os sonhos dela ficaram suspensos entre fisioterapias e dores crónicas.

Uma tarde, enquanto lhe dava banho — coisa que nunca pensei fazer à minha própria mãe — ela olhou-me nos olhos:

— Nunca imaginei acabar assim… dependente dos meus filhos para tudo.

Fiquei sem palavras. O orgulho dela sempre foi maior do que qualquer dor física. Abracei-a com força.

O Rui começou finalmente a ajudar mais: levava-lhe as compras, ficava com ela ao fim-de-semana para eu poder descansar um pouco. Mas as feridas emocionais ficaram: ressentimentos antigos vieram ao de cima; mágoas nunca resolvidas tornaram-se impossíveis de ignorar.

Um dia sentei-me sozinha na varanda dela e chorei tudo o que tinha guardado: medo de perdê-la; raiva por ter de ser adulta antes do tempo; culpa por desejar ter a minha vida de volta.

Agora olho para trás e vejo como aquele dia mudou tudo: obrigou-nos a enfrentar verdades incómodas sobre nós próprios e sobre o que significa realmente cuidar de quem amamos.

Pergunto-me muitas vezes: será que fiz tudo o que podia? Será que algum dia vou conseguir perdoar-me pelas vezes em que desejei fugir? E vocês… já passaram por algo assim? Como lidaram com o peso de cuidar de quem sempre cuidou de vocês?