O Apartamento que Mudou Tudo: Entre a Ausência e a Ganância

— Não me venhas com histórias, Mariana! Eu tenho direito a metade desse apartamento! — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da noite como uma faca afiada. Eu estava sentada à mesa, as mãos trémulas em cima do tampo de madeira, tentando processar tudo o que tinha acontecido nas últimas semanas.

Nunca conheci o meu pai. Durante anos, sempre que perguntava por ele, a minha mãe respondia com um encolher de ombros ou mudava de assunto. “Não tens pai, Mariana. Somos só nós as duas.” Cresci a acreditar nisso, a sentir-me incompleta, como se faltasse uma peça fundamental do meu puzzle. Os outros miúdos na escola falavam dos pais com orgulho ou raiva, mas pelo menos tinham histórias para contar. Eu tinha apenas o vazio.

Foi no ano passado, já com 25 anos, que a verdade finalmente veio ao de cima. A minha mãe estava estranha há dias, mais calada do que o habitual. Uma noite, depois do jantar, sentou-se à minha frente e disse:

— Preciso de te contar uma coisa sobre o teu pai.

O coração disparou-me no peito. Ela contou-me que ele se chamava António e que tinha ido embora antes de eu nascer. Disse-me que nunca quis saber de mim, que nunca mandou notícias nem dinheiro. Senti raiva, tristeza e um estranho alívio por finalmente ter um nome para aquele fantasma.

Duas semanas depois, recebi uma carta de um advogado. O meu pai tinha morrido e deixado um apartamento em Lisboa em meu nome. Fui vê-lo — era pequeno, antigo, mas era meu. Pela primeira vez na vida, senti que tinha algo só meu, uma ligação ao passado que me fora negado.

Mas a paz durou pouco. Assim que contei à minha mãe sobre a herança, ela transformou-se. Começou a falar em direitos, em sacrifícios que fez por mim, em tudo o que passou sozinha. No início tentei compreender:

— Mãe, eu sei que foi difícil para ti…

— Difícil? Mariana, tu não fazes ideia! Fui eu que te criei sozinha! Ele nunca te deu nada! Agora que aparece um apartamento, achas justo ficares com tudo?

As discussões tornaram-se diárias. Ela ameaçou levar-me a tribunal. Disse aos meus tios e avós que eu era ingrata, que lhe devia tudo. Senti-me encurralada entre a culpa e a justiça.

Lembro-me de uma noite em particular. Estava sentada no chão do apartamento vazio, as paredes frias à minha volta. O cheiro a mofo misturava-se com as lágrimas que me escorriam pelo rosto.

“Será que ela tem razão? Será que lhe devo metade disto? Ou será que este apartamento é a única coisa que o meu pai me deixou para compensar todos os anos de ausência?”

No dia seguinte, fui falar com o advogado.

— Dona Mariana, legalmente o apartamento é seu. A sua mãe não tem direito a nada — explicou ele com voz calma.

Mas a lei pouco importava quando se tratava da minha mãe. Ela continuava a pressionar-me:

— Eu podia ter-te deixado num lar! Podia ter-te dado para adoção! Mas aguentei tudo sozinha! Agora queres ficar com tudo?

Comecei a evitar ir a casa dela. Os telefonemas tornaram-se frios e curtos. Senti-me órfã duas vezes: primeiro do pai ausente e agora da mãe presente demais.

Os meus amigos diziam para eu não ceder:

— Isso é chantagem emocional! — dizia a Joana.

— Mas ela é tua mãe… — murmurava o Rui, sempre mais compreensivo.

A verdade é que eu própria não sabia o que fazer. O apartamento era uma oportunidade de começar de novo: podia sair da casa da minha mãe, ter o meu espaço, talvez até arrendar e juntar algum dinheiro para estudar fora.

Mas cada vez que pensava nisso, ouvia a voz dela na minha cabeça:

— Sem mim não eras nada!

Uma tarde, decidi confrontá-la de vez. Fui até à casa dela e bati à porta com força.

— Mãe, precisamos de falar.

Ela olhou para mim com olhos vermelhos de tanto chorar.

— Vais dar-me metade ou não?

— Não sei… — respondi, sincera. — Mas preciso que percebas uma coisa: este apartamento não apaga o que passaste por mim. Mas também não apaga o facto de teres mentido durante anos sobre o meu pai. Eu cresci sem saber quem era metade de mim!

Ela ficou em silêncio por um momento. Depois explodiu:

— E achas que foi fácil para mim? Achas que eu queria mentir-te? Eu só queria proteger-te!

— Proteger-me ou proteger-te a ti? — perguntei baixinho.

Ela virou-me as costas e foi para o quarto. Fiquei ali parada na sala vazia, sentindo-me mais sozinha do que nunca.

Os dias passaram e ela continuou sem falar comigo. No Natal, enviei-lhe uma mensagem: “Feliz Natal, mãe.” Não respondeu.

Passei o primeiro Natal da minha vida sozinha no apartamento do meu pai. Olhei para as paredes nuas e pensei em tudo o que tinha perdido e ganho naquele ano.

Será que algum dia vou conseguir perdoar a minha mãe? Será que este apartamento vai ser sempre um símbolo de discórdia ou pode tornar-se um novo começo?

E vocês? O que fariam no meu lugar? O amor de mãe justifica tudo? Ou há limites para o perdão?