“Levas-me contigo?” – Uma história de mãe, filha e fronteiras intransponíveis
— Vais mesmo deixar-me aqui sozinha, Mariana? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor estreito do apartamento, carregada de mágoa e um tom de desafio que me fez estremecer. O cheiro a sopa de legumes pairava no ar, misturado com o odor persistente de medicamentos e solidão. Eu estava de pé, junto à porta, com as chaves na mão, sentindo o peso do mundo nos ombros.
Olhei para ela, sentada no sofá gasto, as mãos magras apertadas no colo. O cabelo grisalho apanhado num coque desfeito, os olhos escuros fixos em mim como se quisessem arrancar uma promessa. — Mãe, sabes que não é assim tão simples…
— Não é simples? — interrompeu-me, a voz subindo uma oitava. — Sou tua mãe! Fui eu que te criei sozinha depois que o teu pai nos deixou. Dei-te tudo! Agora que preciso de ti, dizes-me que não é simples?
Senti o rosto arder de vergonha e raiva. Quantas vezes já tínhamos tido esta conversa? Quantas vezes ela me atirara à cara os sacrifícios do passado? Mas agora era diferente. Agora ela estava mesmo a pedir-me: “Leva-me contigo. Salva-me desta solidão.”
O problema era o Rui. O meu marido nunca se deu com a minha mãe. Desde o início, havia entre eles uma tensão surda, feita de pequenas farpas e silêncios constrangedores. Rui dizia que ela era manipuladora, que me fazia sentir culpada por tudo. A minha mãe dizia que ele era frio, egoísta, incapaz de perceber o valor da família.
— Mariana, não podes continuar a viver assim — disse-me ele uma noite, depois de mais uma discussão ao telefone com a minha mãe. — Ela está a sugar-te a vida. Não vês?
Mas eu via. Via a minha mãe envelhecer sozinha num T2 húmido em Benfica, rodeada de fotografias antigas e recordações amargas. Via também o Rui afastar-se de mim cada vez que eu cedia aos pedidos dela: “Vem cá jantar”, “Leva-me ao médico”, “Fica comigo esta noite”.
Naquela tarde, quando ela me perguntou se a levava para minha casa, senti o chão fugir-me dos pés. — Mãe… O Rui…
Ela levantou-se com dificuldade e aproximou-se de mim. — O Rui não manda em ti! Ou manda?
Fiquei calada. Não era só isso. Era o medo de perder o pouco equilíbrio que ainda restava no meu casamento. Era o receio de trazer para dentro da minha casa todos os fantasmas do passado: as discussões intermináveis sobre dinheiro, as críticas veladas ao meu modo de ser mãe (sim, porque agora eu também era mãe da pequena Inês), as exigências constantes.
— Mariana, por favor… — A voz dela quebrou-se. Pela primeira vez vi-a realmente frágil, quase infantil.
Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe as mãos. — Mãe, eu amo-te. Mas não posso… Não consigo…
Ela afastou-se bruscamente. — Então é isso? Preferes ele a mim? Depois de tudo?
As lágrimas começaram a cair-lhe pelo rosto enrugado. Senti um nó na garganta. Quis abraçá-la, mas ela virou-se para a janela.
— Vai-te embora — murmurou.
Saí do apartamento com o coração aos saltos e as mãos a tremer. No carro, liguei ao Rui.
— Então? — perguntou ele, seco.
— Ela pediu para ir viver connosco.
Silêncio do outro lado.
— Disseste-lhe que não?
— Disse…
— Ainda bem.
A frieza dele magoou-me mais do que as palavras da minha mãe. Cheguei a casa e encontrei a Inês a brincar na sala. Peguei nela ao colo e enterrei o rosto no seu cabelo macio. Senti-me dividida em mil pedaços.
Durante semanas, evitei visitar a minha mãe. O Rui parecia aliviado; até começou a fazer planos para umas férias só nós os três. Mas eu sentia-me cada vez mais vazia.
Uma noite, acordei sobressaltada com o telefone a tocar. Era o hospital de Santa Maria: a minha mãe tinha caído em casa e partido o fémur.
Corri para lá sem pensar em nada. Quando cheguei ao quarto dela, vi-a tão pequena na cama branca, ligada a máquinas e rodeada por um silêncio pesado.
— Mariana… — sussurrou ela quando me viu.
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Desculpa… — disse eu, sem saber bem porquê.
Ela sorriu tristemente. — Não tens culpa… Só queria não estar tão sozinha.
Fiquei ali horas, a vê-la dormir. Pensei em tudo o que tínhamos vivido: os natais apertados mas felizes, as tardes no Jardim da Estrela quando eu era pequena, as noites em que ela chorava baixinho na cozinha para eu não ouvir.
Quando finalmente tive coragem para ir embora, prometi-lhe que ia estar mais presente. E cumpri: todos os dias depois do trabalho passava pelo hospital; levava-lhe livros, fruta fresca, fotografias da Inês.
O Rui começou a reclamar: — Não podes continuar assim! A tua vida não pode girar à volta dela!
Mas eu já não conseguia voltar atrás. Sentia que lhe devia isso — ou talvez estivesse apenas a tentar aliviar a culpa que me consumia.
A recuperação foi lenta. Quando finalmente teve alta, recusou-se a ir para um lar: — Prefiro morrer em casa!
Arranjei-lhe uma senhora para ajudar nas tarefas domésticas e continuei a visitá-la todos os dias. O Rui afastou-se ainda mais; as nossas conversas tornaram-se monossilábicas, cheias de silêncios pesados.
Um dia cheguei a casa e encontrei-o com as malas feitas.
— Não aguento mais — disse ele. — Ou ela ou eu.
Olhei para ele sem saber o que dizer. Tinha medo de perder tudo: o marido, a família que construímos juntos… mas também tinha medo de abandonar a minha mãe à solidão absoluta.
— Preciso pensar — murmurei.
Ele saiu sem olhar para trás.
Nessa noite fiquei sozinha com a Inês adormecida no quarto ao lado e chorei como há muito não chorava.
Os dias seguintes foram um turbilhão: trabalho, hospital, telefonemas do Rui (cada vez mais raros), perguntas da Inês sobre o pai.
A minha mãe melhorou lentamente; voltou a andar com dificuldade mas recusava qualquer ajuda extra.
— Não quero ser um peso para ti — disse-me um dia, com uma dignidade ferida que me partiu o coração.
— Nunca foste um peso…
Ela sorriu tristemente: — Fui sim… E tu mereces ser feliz à tua maneira.
Nesse momento percebi que nunca conseguiria agradar às duas pessoas mais importantes da minha vida ao mesmo tempo. Havia fronteiras que simplesmente não podiam ser atravessadas sem deixar alguém para trás.
Hoje vivo sozinha com a Inês num pequeno apartamento em Campo de Ourique. O Rui visita-a aos fins-de-semana; a minha mãe continua no seu T2 em Benfica, cada vez mais frágil mas determinada a manter alguma independência.
Às vezes pergunto-me se fiz as escolhas certas. Se poderia ter feito diferente; se teria sido possível conciliar tudo sem perder tanto pelo caminho.
Mas talvez seja isso ser adulta: aprender a viver com as cicatrizes das nossas decisões e tentar fazer melhor amanhã do que fizemos ontem.
E vocês? Já sentiram que qualquer escolha vos roubaria uma parte essencial de quem são?