Expulsei o Meu Filho de Casa e Fui Viver com a Minha Nora: Não Me Arrependo, Mas Gostava de Ter Tido Coragem Mais Cedo
— Mãe, não podes estar a falar a sério! — gritou o Rui, com os olhos vermelhos de raiva, enquanto eu segurava a mala na mão. O cheiro do café queimado pairava no ar da cozinha, misturado com o perfume doce das flores que a Ana tinha acabado de pôr na jarra. O relógio marcava 7h15 da manhã, mas eu já sentia que aquele dia ia durar uma eternidade.
Olhei para o meu filho, o mesmo que embalei nos braços tantas noites, e vi nele um estranho. O Rui não era mais aquele menino doce que me pedia colo quando caía no recreio. Agora era um homem feito, mas com uma dureza no olhar que nunca reconheci no meu falecido marido, o António. O António era tudo o que o Rui não conseguia ser: paciente, carinhoso, justo. Recordo-me do seu sorriso aberto e da forma como me fazia sentir segura só com um olhar. Tinha uma voz grave, quente, que me acalmava até nos piores dias. Quando ele morreu, jurei a mim mesma que ia proteger o nosso filho de tudo. Nunca pensei que um dia teria de proteger alguém do próprio filho.
A Ana estava encostada à porta da sala, os olhos baixos, as mãos a tremerem. Ela sempre foi discreta, quase invisível quando o Rui estava por perto. Mas eu via tudo: os olhares de medo, as respostas curtas para evitar discussões, as noites em que ela chorava baixinho no quarto ao lado do meu. Durante anos fechei os olhos, convencendo-me de que eram apenas fases, discussões normais de casal. Mas não eram.
— Mãe, não podes fazer isto! — insistiu ele, agora mais baixo, quase num sussurro ameaçador.
Respirei fundo e tentei não tremer.
— Rui, tu é que me obrigaste. Não posso continuar a fingir que não vejo o que fazes à Ana. Não posso ser cúmplice do teu silêncio e da tua raiva. Vais sair desta casa hoje.
O silêncio caiu pesado entre nós. A Ana olhou-me com uma mistura de alívio e culpa. O Rui ficou estático durante uns segundos e depois atirou a chávena contra a parede. Os cacos espalharam-se pelo chão como os pedaços da nossa família.
— És igualzinha à tua mãe! — gritou ele para a Ana. — Sempre a meter-se onde não é chamada!
A Ana encolheu-se ainda mais. Eu avancei para o Rui e olhei-o nos olhos.
— Chega! Vais sair agora. E se voltares a levantar a voz à Ana ou a mim, eu chamo a polícia.
Ele bufou, pegou nas chaves e saiu porta fora, batendo com tanta força que os vidros estremeceram.
Ficámos as duas em silêncio durante minutos intermináveis. Sentei-me à mesa e senti as lágrimas a escorrerem-me pela cara. Não eram só de tristeza; eram também de alívio e vergonha por ter demorado tanto tempo a agir.
A Ana aproximou-se devagarinho e pousou a mão sobre a minha.
— Obrigada, D. Teresa…
— Não me agradeças — interrompi-a. — Fui cobarde durante demasiado tempo.
Naquela noite dormi no quarto do Rui, agora vazio. O cheiro dele ainda pairava no ar: uma mistura de tabaco e perfume barato. Olhei para as paredes cheias de posters de bandas antigas e senti uma pontada no peito. Onde é que falhei? O que é que fiz de errado para criar um filho assim?
Os dias seguintes foram um turbilhão de telefonemas e mensagens da família. A minha irmã Margarida ligou-me aos gritos:
— Teresa, perdeste o juízo? Expulsar o teu próprio filho? O que é que vão dizer as vizinhas?
— Que digam o que quiserem — respondi-lhe, tentando soar firme. — Prefiro ser falada do que viver com medo dentro da minha própria casa.
O meu irmão Manuel foi mais duro:
— Sempre foste mole com o Rui. Agora vês no que deu? Devias era ter-lhe dado umas palmadas quando era pequeno!
Fiquei calada. Talvez tivesse razão. Sempre fui demasiado protetora, sempre desculpei tudo porque achava que ele precisava de mim depois da morte do pai. Mas será que isso desculpa tudo?
A Ana começou a ganhar cor no rosto. Aos poucos foi-se abrindo comigo. Contou-me coisas que nunca imaginei: as discussões constantes, os insultos, as ameaças veladas quando ela queria sair com as amigas ou visitar os pais em Setúbal.
— Ele nunca me bateu… mas às vezes parecia que ia acontecer — confessou ela numa noite em que ficámos até tarde na sala.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como é que não vi nada? Como é que deixei isto acontecer debaixo do meu próprio teto?
Os dias foram passando e comecei a sentir-me mais leve, apesar dos olhares atravessados das vizinhas e dos comentários sussurrados no café da esquina:
— Ouviste? A Teresa pôs o filho na rua por causa da nora…
— Aquilo não vai acabar bem…
Mas eu já não queria saber. Pela primeira vez em muitos anos sentia-me dona da minha vida.
O Rui tentou ligar-me várias vezes, mas nunca atendi. Mandou mensagens cheias de raiva e mágoa:
“Mãe, como foste capaz?”
“Escolheste a estranha em vez do teu próprio filho.”
“Quando precisares de mim, não contes comigo.”
Li cada mensagem como se fosse uma facada no peito. Mas mantive-me firme.
A Ana começou a reconstruir-se aos poucos. Voltou à faculdade para acabar o curso de enfermagem que tinha deixado para trás por causa do Rui. Vi-a sorrir novamente, vi-a sair com amigas e até trazer os pais cá a casa para jantar ao domingo.
Uma noite, enquanto lavávamos os pratos juntas, ela olhou para mim e disse:
— Sabe… às vezes sinto-me culpada por estar feliz agora.
Abracei-a com força.
— Não tens culpa nenhuma, minha querida. A felicidade não é crime.
Com o tempo fui percebendo que também eu estava a reaprender a ser feliz. Comecei a ir ao mercado sozinha outra vez, voltei a costurar as minhas almofadas coloridas e até aceitei um convite para ir ao cinema com as amigas do centro de dia.
Mas havia noites em que me sentava na varanda e olhava para as estrelas, perguntando-me se algum dia o Rui iria perceber porque fiz o que fiz.
A família continuou dividida: uns achavam-me corajosa, outros diziam que tinha perdido o norte. Os meus netos deixaram de vir cá a casa porque a mãe deles — ex-mulher do meu outro filho — achava que eu era má influência.
No Natal desse ano fomos só eu e a Ana à missa do Galo. Sentámo-nos juntas na última fila da igreja fria e vazia. Quando começou o coro das crianças senti um nó na garganta e chorei baixinho.
A Ana apertou-me a mão sem dizer nada.
Hoje olho para trás e penso em tudo o que perdi… mas também em tudo o que ganhei: paz, liberdade e uma nova amizade com alguém que sempre esteve ali ao meu lado sem eu ver.
Se pudesse voltar atrás teria tido coragem mais cedo? Talvez sim… talvez não.
Mas pergunto-me: quantas mães há por aí presas ao medo de enfrentar os próprios filhos? Quantas famílias vivem em silêncio para manter as aparências?
Será que algum dia vamos aprender a escolher aquilo que nos faz bem… mesmo quando dói?