Entre o Silêncio e o Grito: O Dia em que o Meu Filho me Virou as Costas
— Miguel, anda jantar! — gritei da cozinha, tentando disfarçar o tremor na voz. O cheiro do arroz de pato enchia a casa, mas o silêncio dele era mais pesado do que qualquer aroma.
Ouvi passos arrastados no corredor. Miguel apareceu à porta, olhos baixos, mochila ainda às costas. — Não tenho fome, mãe. Vou jantar amanhã na casa da avó Lurdes. Lá é melhor.
A faca caiu-me das mãos e fez um barulho seco na bancada. Senti o peito apertar-se, como se alguém me tivesse arrancado o ar. — O quê? — perguntei, tentando manter a compostura. — O que é que disseste?
Ele não respondeu. Limitou-se a olhar para o chão, como se tivesse vergonha ou medo. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim, misturada com uma tristeza antiga, dessas que nunca se curam completamente.
O meu marido, António, entrou na cozinha nesse momento, olhando de um para o outro. — O que se passa aqui?
Miguel encolheu os ombros. — Nada. Só quero ir para a casa da avó.
António suspirou e passou a mão pela cabeça. — Deixa-o ir, Maria. Ele gosta de lá estar.
Fiquei sozinha na cozinha, rodeada pelo cheiro do jantar que ninguém ia comer. Sentei-me à mesa e chorei baixinho, para ninguém ouvir. Mas as paredes da nossa casa já estavam habituadas ao som das minhas lágrimas.
A relação com Dona Lurdes nunca foi fácil. Desde o início do meu casamento com António que ela fazia questão de mostrar quem mandava. Sempre com aquele sorriso doce e palavras mansas, mas cada frase dela era uma faca afiada: “Na minha altura é que se sabia educar filhos”, “O António nunca fazia birras assim”, “Se calhar devias ser mais firme”.
No início tentei agradar-lhe. Levava-lhe bolos caseiros, pedia conselhos sobre tudo e mais alguma coisa. Mas nunca era suficiente. Quando engravidei do Miguel, ela apareceu em nossa casa com um enxoval inteiro — tudo escolhido por ela, claro. “Assim não tens trabalho”, disse-me, mas eu sabia que era só mais uma maneira de mostrar que eu não era capaz.
Miguel nasceu num dia de chuva miudinha, e lembro-me de olhar para ele e prometer que nunca lhe faltaria nada. Mas Dona Lurdes estava sempre lá, pronta a corrigir-me: “Não lhe dês colo, Maria, senão fica mimado”, “O leite materno já não alimenta nada”, “Deixa-o chorar, faz bem aos pulmões”.
António raramente tomava partido. Dizia sempre: “É a minha mãe, Maria. Não leves a mal.” Mas eu levava. Levava tudo para dentro de mim até não caber mais.
Com os anos, Miguel foi crescendo e a ligação à avó tornou-se cada vez mais forte. Ela dava-lhe tudo o que eu não podia: brinquedos caros, tardes inteiras de televisão, doces antes do jantar. Eu tentava impor regras, mas sentia-me sempre a vilã da história.
— Mãe, porque é que não posso ir dormir à casa da avó? — perguntava ele quase todos os fins-de-semana.
— Porque tens escola amanhã e precisas de descansar — respondia eu, tentando soar firme.
— Mas lá posso ficar acordado até mais tarde…
E lá vinha António: — Deixa-o ir, Maria. Não faz mal nenhum.
Sentia-me sozinha dentro da minha própria casa. Comecei a duvidar de mim mesma: seria eu demasiado rígida? Estaria a ser má mãe?
As discussões com António tornaram-se mais frequentes. Ele chegava tarde do trabalho e mal falávamos durante o jantar. Uma noite, depois de Miguel adormecer, sentei-me ao lado dele no sofá.
— António, achas que o Miguel gosta mais da tua mãe do que de mim?
Ele olhou-me como se eu estivesse a dizer um disparate. — Não digas isso, Maria. Ele é só uma criança.
— Mas ele prefere estar lá do que aqui… — sussurrei.
António encolheu os ombros e voltou-se para a televisão.
No dia seguinte fui buscar Miguel à escola e encontrei Dona Lurdes à porta do portão.
— Olá Maria! Vim buscar o Miguel para lanchar comigo — disse ela com aquele sorriso habitual.
— Eu já cá estou — respondi, tentando sorrir também.
Ela olhou-me de cima a baixo e disse baixinho: — Não te preocupes tanto. Eles crescem depressa demais para perderes tempo com ciúmes.
Senti vontade de gritar-lhe tudo o que me ia na alma: que estava cansada de ser posta de lado na vida do meu próprio filho; que me sentia invisível; que só queria ser suficiente para ele. Mas calei-me. Como sempre.
Em casa, Miguel estava cada vez mais distante. Passava horas no telemóvel ou fechado no quarto. Quando tentava conversar com ele, respondia-me com monossílabos ou nem sequer me olhava nos olhos.
Uma noite ouvi-o ao telefone com Dona Lurdes:
— Avó, posso ir aí amanhã? Aqui em casa é uma seca…
Senti o coração partir-se em mil pedaços.
No domingo seguinte houve almoço de família em casa da sogra. A mesa estava cheia: primos barulhentos, tias curiosas e Dona Lurdes no centro de tudo, servindo comida como uma rainha no seu trono.
Durante a sobremesa ouvi-a dizer para uma das tias:
— O Miguel é como um filho para mim! Se não fosse eu… nem sei!
Olhei para António à espera de uma reação, mas ele limitou-se a sorrir e encolher os ombros.
Quando voltámos para casa explodi:
— Não aguento mais! Sinto-me uma estranha na minha própria família!
António levantou-se do sofá: — Estás a exagerar! A minha mãe só quer ajudar!
— Ajudar? Ela está a roubar-me o filho!
Miguel ouviu-nos a discutir e fechou-se ainda mais no quarto dele.
Os dias passaram e comecei a sentir-me cada vez mais isolada. No trabalho já não conseguia concentrar-me; em casa evitava olhar para António; com Miguel era como se falássemos línguas diferentes.
Uma tarde recebi um telefonema da escola: Miguel tinha faltado às aulas sem avisar ninguém. Corri para casa da sogra e encontrei-o lá, sentado no sofá a ver televisão com ela.
— O que estás aqui a fazer? — perguntei-lhe furiosa.
Dona Lurdes levantou-se imediatamente: — Calma, Maria! Ele só precisava de um dia diferente…
— Um dia diferente? E se lhe acontecesse alguma coisa? E se eu não soubesse onde ele estava?
Miguel olhou-me finalmente nos olhos:
— Tu nunca tens tempo para mim! Só sabes ralhar!
Senti as pernas fraquejar e sentei-me no chão da sala dela. Chorei ali mesmo, à frente deles os dois.
Dona Lurdes aproximou-se e pousou uma mão no meu ombro:
— Maria… eu só quero ajudar…
Olhei para ela através das lágrimas:
— Então ajuda-me a ser mãe do meu próprio filho…
Foi nesse dia que percebi que precisava de mudar alguma coisa em mim antes de exigir mudanças nos outros. Procurei ajuda psicológica; comecei a falar mais abertamente com António sobre os meus sentimentos; tentei reconstruir a relação com Miguel aos poucos — passeios ao fim-de-semana só nós dois; conversas sem julgamentos; abraços demorados mesmo quando ele resmungava.
Não foi fácil nem rápido. Ainda hoje há dias em que sinto ciúmes da ligação dele à avó ou raiva por António nunca ter tomado o meu partido como eu precisava. Mas aprendi que amar também é aceitar as imperfeições dos outros… e as nossas próprias fragilidades.
Às vezes pergunto-me: quantas mães vivem esta solidão silenciosa dentro das suas casas? Quantas mulheres sentem que nunca são suficientes? Será possível reconstruir laços partidos sem perdermos quem somos?