Entre o Passado e o Presente: Quando a Minha Mãe Quis Voltar para Casa
— Não, mãe, não podes simplesmente aparecer aqui com as malas e achar que tudo vai ser como antes! — A minha voz saiu mais alta do que eu queria, mas já não havia volta a dar. O olhar da minha mãe, magoado, fez-me recuar uns passos, mas não consegui evitar. O meu marido, Rui, olhava para mim e para ela, como se estivesse a assistir a um jogo de ténis onde ninguém ganhava.
A minha filha, Leonor, espreitava da porta do quarto, sentindo o peso daquela conversa sem perceber todos os detalhes. Eu sabia que ela era sensível ao ambiente da casa, e isso só me fazia sentir mais culpada. Mas como podia eu esquecer tudo o que vivi naquela casa minúscula em Almada, onde a minha mãe gritava com o meu pai noite sim, noite sim, e eu me encolhia na cama, a rezar para que o silêncio voltasse?
— Filha, eu não tenho para onde ir — disse a minha mãe, com aquela voz trémula que me fazia sentir uma criança outra vez. — O senhorio aumentou a renda e eu não consigo pagar sozinha. Só preciso de um tempo até arranjar outra solução.
Rui tentou intervir, sempre diplomático:
— D. Teresa, claro que queremos ajudar, mas precisamos de pensar bem nisto. A nossa casa é pequena e…
— Não é só isso! — interrompi, sentindo as lágrimas a quererem sair. — Não é só o espaço. É tudo o resto…
O silêncio caiu pesado. Lembrei-me das noites em que a minha mãe chorava na cozinha, depois de discutir com o meu pai. Lembrei-me das vezes em que ela me pedia para ser forte, para não fazer barulho, para não dar trabalho. Cresci depressa demais. E agora, tantos anos depois, sentia-me novamente aquela menina assustada.
A minha mãe pousou as malas no chão e sentou-se no sofá, exausta.
— Eu sei que não fui perfeita — disse ela, olhando para as mãos. — Mas tu também não sabes o que é estar sozinha depois de tantos anos a lutar por tudo…
Senti um nó na garganta. O Rui olhou para mim como quem pede autorização para falar:
— Talvez possamos encontrar uma solução temporária. E se ajudássemos a D. Teresa a procurar um quarto perto daqui? Assim podia vir cá jantar connosco algumas vezes por semana…
A minha mãe olhou para mim com esperança nos olhos. Mas eu sabia que não era suficiente para ela. E sabia também que não era suficiente para mim.
— Mãe… — comecei, tentando controlar a voz — eu quero ajudar-te. Mas não posso voltar atrás no tempo. Não posso fingir que não tenho medo de tudo voltar a ser como antes.
Ela levantou-se de repente:
— Achas que eu quero isso? Achas que eu quero trazer problemas para a tua casa? Só peço um pouco de compreensão!
A Leonor entrou na sala nesse momento, abraçando-se à minha cintura.
— Mãe, está tudo bem?
Ajoelhei-me ao lado dela e abracei-a com força.
— Está tudo bem, filha. Estamos só a conversar.
Mas não estava tudo bem. A minha cabeça era um turbilhão de memórias: os gritos, os silêncios pesados, os olhares de desilusão. O medo de repetir os erros dos meus pais estava sempre presente.
O Rui aproximou-se de mim e sussurrou:
— Não tens de carregar isto sozinha.
Mas eu sentia que tinha. Era a minha mãe. Era o meu passado.
Naquela noite, depois de muita discussão e lágrimas, decidimos que ela ficaria connosco apenas alguns dias, enquanto procurávamos uma solução melhor. Mas cada pequeno gesto dela — arrumar as coisas à sua maneira, comentar sobre como eu educo a Leonor, criticar o Rui por não saber cozinhar — era como uma ferida antiga a abrir-se outra vez.
Uma noite ouvi-a ao telefone com uma amiga:
— A minha filha já não é a mesma. Não tem paciência para mim. Parece que sou um fardo.
Chorei em silêncio no quarto ao lado. Senti-me egoísta por querer proteger a minha família do passado dela — do nosso passado. Mas também sabia que precisava de pôr limites para não me perder outra vez.
No fim daquela semana, encontrámos um quarto numa casa partilhada perto do nosso bairro. Ajudei-a a mudar-se e prometi visitá-la todos os dias. Ela abraçou-me com força antes de entrar na nova casa.
— Desculpa se te magoei — sussurrou ela ao meu ouvido.
— Eu também te magoei — respondi.
No caminho para casa senti-me leve e pesada ao mesmo tempo. Leve por ter conseguido proteger o meu espaço; pesada por sentir que talvez nunca consiga sarar as feridas do passado.
À noite, enquanto via a Leonor dormir tranquila, perguntei-me: será possível quebrar o ciclo dos nossos pais? Ou estamos todos condenados a repetir as mesmas dores?
E vocês? Já sentiram este peso entre querer ajudar e precisar de se proteger? Como é que se encontra o equilíbrio entre o passado e o presente?