Entre o Amor e o Dever: Quando o Meu Marido Escolheu Ficar com a Mãe

— Não posso deixar a minha mãe sozinha, Sofia. Ela precisa de mim agora.

As palavras do Rui ecoaram pelo corredor frio do nosso apartamento em Setúbal. Eu estava de costas para ele, a segurar uma chávena de chá que já não sentia nas mãos. O vapor subia, mas eu só sentia gelo dentro do peito. Tinha acabado de perder o meu pai há três meses e agora sentia que ia perder o meu marido também.

— E eu? — perguntei, sem conseguir olhar para ele. — Eu também preciso de ti.

O Rui suspirou, pesado. — Eu sei, Sofia. Mas a minha mãe está sozinha desde que o meu pai morreu. Ela não sabe viver sem ele. Não come, não dorme… Eu sou o único filho. Não posso virar-lhe as costas.

O silêncio instalou-se entre nós como uma parede. Lembrei-me das vezes em que a Dona Teresa me olhou de lado, como se eu fosse uma intrusa na vida do filho dela. Sempre achei que era exagero meu, mas agora percebia que talvez nunca tivesse sido aceite verdadeiramente.

Naquela noite, Rui fez as malas e saiu. O som da porta a fechar foi como um trovão. Fiquei sentada no sofá, a olhar para o vazio, a tentar perceber onde tinha falhado. Será que devia ter sido mais compreensiva? Ou será que ele devia ter escolhido ficar comigo?

Os dias seguintes foram um tormento. Acordava sozinha, jantava sozinha, adormecia com o cheiro dele ainda nos lençóis. A minha mãe ligava-me todos os dias:

— Filha, tens de ser forte. O Rui está a passar por um momento difícil.

Mas eu só conseguia pensar em mim e na solidão que me consumia. No trabalho, os colegas perguntavam pelo Rui e eu respondia com um sorriso forçado:

— Está tudo bem, só está a ajudar a mãe.

Mas não estava tudo bem. Sentia-me traída, como se tivesse sido posta em segundo plano. Comecei a evitar sair de casa ao fim de semana para não ver casais felizes na rua. Até a minha melhor amiga, Mariana, começou a notar:

— Sofia, tu não podes viver assim. Tens de falar com ele.

— E dizer o quê? Que me sinto abandonada? Que tenho ciúmes da própria mãe dele?

— Não é ciúme, é amor-próprio. Ele também tem de perceber o que tu sentes.

Ganhei coragem e liguei ao Rui numa noite de sexta-feira chuvosa.

— Preciso de falar contigo — disse-lhe, a voz trémula.

Ele aceitou encontrar-se comigo num café perto da casa da mãe dele. Quando chegou, parecia mais velho, mais cansado.

— Como estás? — perguntou.

— Sinto-me sozinha — respondi sem rodeios. — Sinto que perdi o meu marido para a tua mãe.

Ele baixou os olhos. — Sofia, eu não queria magoar-te. Mas ela está tão frágil…

— E eu? Achas que sou feita de ferro? Também perdi alguém importante há pouco tempo.

Rui ficou calado durante uns segundos longos demais.

— Eu sei… Desculpa. Só que ela faz-me sentir culpado sempre que tento sair de casa. Diz que não tem mais ninguém no mundo.

Senti raiva e pena ao mesmo tempo. Sabia que ele era um bom filho, mas também era meu marido. Tínhamos feito promessas um ao outro.

— Rui, eu compreendo que queiras ajudar a tua mãe. Mas não podes esquecer-te de mim. Eu também sou tua família agora.

Ele passou as mãos pelo cabelo, nervoso.

— Não sei como fazer isto sem magoar ninguém.

— Talvez possamos encontrar uma solução juntos — sugeri, com esperança tímida na voz. — E se ela viesse viver connosco por uns tempos?

Rui olhou para mim como se eu tivesse dito algo impensável.

— Achas mesmo que isso ia resultar?

— Não sei… Mas pelo menos não te perdia completamente.

Ele prometeu pensar no assunto e voltámos cada um para seu lado naquela noite. Passei horas a imaginar como seria ter a Dona Teresa em casa. Lembrei-me das suas críticas veladas à minha comida, dos olhares reprovadores quando eu ria alto demais ou usava calças rasgadas em casa.

Mas também me lembrei do Rui e do quanto ele significava para mim.

No domingo seguinte, fui até à casa da Dona Teresa com um bolo de laranja feito por mim — ela sempre dizia que ninguém sabia fazer bolos como ela fazia antigamente. Quando cheguei, ela abriu a porta com um ar desconfiado.

— Olá, Dona Teresa… Trouxe-lhe um bolo.

Ela olhou para mim durante uns segundos antes de aceitar o prato.

— Obrigada… Entra.

Sentei-me na sala onde tudo cheirava a naftalina e memórias antigas. O Rui apareceu pouco depois e ficou surpreendido por me ver ali.

— Vim falar consigo e com o Rui — disse à Dona Teresa. — Sei que está a passar por um momento difícil e não quero ser um obstáculo entre vocês dois. Mas também preciso do meu marido ao meu lado.

Ela ficou calada durante muito tempo antes de responder:

— Eu sei que sou difícil… Mas desde que o meu marido morreu sinto-me perdida. O Rui é tudo o que me resta.

— E eu não quero tirá-lo de si — respondi com sinceridade. — Mas também preciso dele para conseguir seguir em frente com a minha vida.

A Dona Teresa olhou para o filho e depois para mim.

— Talvez pudesse ir passar uns dias convosco… Só até me habituar à ideia de estar sozinha.

O Rui sorriu pela primeira vez em semanas e senti uma pontada de esperança no peito.

Os primeiros dias foram complicados. A Dona Teresa criticava tudo: desde o tempero da comida até à forma como arrumava os pratos na prateleira. O Rui tentava ser mediador mas acabava sempre a defender a mãe.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem devia lavar a loiça, fechei-me no quarto e chorei baixinho para não me ouvirem. O Rui entrou pouco depois e sentou-se ao meu lado na cama.

— Desculpa… Isto não está fácil para ninguém.

— Sinto-me uma estranha na minha própria casa — confessei.

Ele abraçou-me e prometeu tentar impor alguns limites à mãe dele. Aos poucos, as coisas começaram a mudar. A Dona Teresa começou a ajudar mais em casa e até pediu desculpa por algumas das suas atitudes.

Um dia, surpreendeu-me ao perguntar:

— Sofia… Queres aprender a fazer o bolo de laranja como eu fazia?

Senti lágrimas nos olhos ao perceber que talvez estivéssemos finalmente a encontrar um equilíbrio.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci com tudo isto. Aprendi que amar alguém também é saber partilhar e ceder, mesmo quando dói. E pergunto-me: quantas famílias se perdem porque ninguém tem coragem de falar abertamente sobre as suas dores?

E vocês? Já sentiram que estavam a perder alguém para outra pessoa da família? Como lidaram com isso?