Entre o Amor e a Culpa: O Peso das Expectativas de Minha Mãe

— Vais faltar outra vez, Mariana? — A voz da minha mãe ecoou pelo telefone, carregada de uma tristeza que me perfurou o peito. — Já não me lembro da última vez que estivemos todos juntos à mesa.

Fechei os olhos, sentindo o peso da culpa a apertar-me o coração. Era sexta-feira à noite e, como tantas outras vezes, estava sentada no sofá da minha casa em Lisboa, com o portátil aberto e a cabeça cheia de prazos do trabalho. O cheiro do jantar queimada no forno misturava-se com a ansiedade que me corroía.

— Mãe, eu sei… Mas esta semana foi impossível. O Tomás está com febre, o Miguel ficou até tarde no escritório e eu… — A minha voz falhou. Não queria dar desculpas, mas era a verdade. — Prometo que para a semana vamos aí.

Do outro lado, ouvi um suspiro longo. — Para a semana… Para a semana… Sempre para a semana, Mariana. Sabes que o teu pai sente falta dos netos. E eu… eu também.

Desliguei o telefone com um nó na garganta. Olhei para o Miguel, que me observava em silêncio.

— Outra vez? — perguntou ele, baixinho.

Assenti. — Ela não entende. Parece que nada do que faço é suficiente. Sinto-me sempre em dívida.

Miguel aproximou-se e pousou a mão no meu ombro. — Não és só tu. A tua irmã também se queixa do mesmo. Talvez devesses falar com ela sobre isso.

No dia seguinte, liguei à Sofia, minha irmã mais velha. Ela atendeu com a voz cansada.

— Também recebeste o telefonema da mãe? — perguntei, sem rodeios.

— Recebi. E já nem sei o que lhe dizer. Ontem fui lá levar-lhe pão fresco e ela passou meia hora a lamentar-se porque não ficámos para jantar. Mariana, às vezes sinto que nunca vamos conseguir agradar-lhe.

Ficámos em silêncio durante alguns segundos. Lembrei-me dos domingos da nossa infância, quando a casa dos meus pais se enchia de vozes e risos, e a minha mãe servia arroz de pato como se fosse um banquete real. Agora, tudo parecia distante e impossível de recuperar.

— Achas que estamos a falhar como filhas? — perguntei, num sussurro.

— Não — respondeu Sofia, firme. — Estamos a viver as nossas vidas. Mas ela não consegue aceitar isso.

Na semana seguinte, decidi ir visitar os meus pais sozinha. Queria falar com a minha mãe cara a cara, explicar-lhe como me sentia. Quando cheguei, ela estava na cozinha, a preparar sopa de legumes.

— Vieste sozinha? — perguntou, sem esconder a desilusão.

— O Tomás ainda está doente e o Miguel ficou com ele. Queria falar contigo.

Sentámo-nos à mesa. O cheiro da sopa era reconfortante, mas o ambiente estava tenso.

— Mãe, eu sei que sentes falta de nós. Eu também sinto falta dos nossos domingos juntos. Mas agora é tudo tão diferente… O trabalho, os miúdos… Às vezes sinto-me sufocada pelas tuas expectativas.

Ela baixou os olhos para as mãos enrugadas. — Eu só queria sentir que ainda somos uma família unida. Quando vocês eram pequenas, prometi a mim mesma que nunca deixaria que se afastassem de mim.

— Mas crescemos, mãe. Temos as nossas vidas, as nossas rotinas… Não é por não virmos todas as semanas que deixamos de te amar.

Ela limpou uma lágrima teimosa com o avental. — Eu sei… Mas custa-me tanto ver esta casa vazia.

Ficámos ali sentadas em silêncio, cada uma mergulhada nos seus próprios pensamentos e dores. Senti vontade de abraçá-la, mas algo me travou — talvez o medo de não conseguir quebrar aquela barreira invisível entre nós.

Nos dias seguintes, tentei ligar-lhe mais vezes, enviar mensagens com fotos dos netos, partilhar pequenos momentos do nosso dia-a-dia. Às vezes respondia com entusiasmo; outras vezes, apenas com um emoji triste ou um simples “obrigada”.

O Natal aproximava-se e as discussões familiares intensificaram-se no grupo do WhatsApp: quem leva o bacalhau, quem traz as filhoses, quem fica encarregue das prendas para os primos mais novos. A minha mãe insistia em reunir toda a família na véspera de Natal, mas a Sofia tinha prometido passar esse ano com os sogros e o meu irmão Pedro estava de serviço no hospital.

— Isto já não é família nenhuma! — desabafou a minha mãe numa mensagem de voz cheia de mágoa. — Cada um faz o que quer e eu fico sempre para trás!

Senti-me dividida entre o desejo de agradar-lhe e a necessidade de respeitar os compromissos da minha própria família. O Miguel sugeriu fazermos um almoço especial no dia 25 só com os meus pais e os nossos filhos.

— Pelo menos assim ela não fica sozinha — disse ele.

No dia 25, chegámos à casa dos meus pais com um bolo-rei ainda quente e presentes embrulhados à pressa. A minha mãe recebeu-nos com um sorriso forçado e olhos vermelhos de tanto chorar.

Durante o almoço, tentei animar a conversa, mas cada vez que alguém mencionava uma ausência — “A Sofia está nos sogros”, “O Pedro está no hospital” — via o olhar da minha mãe perder-se na janela da sala.

Depois do almoço, sentei-me ao lado dela no sofá.

— Mãe…

Ela interrompeu-me com um gesto suave na mão.

— Eu sei que não posso prender-vos aqui para sempre. Mas custa-me aceitar que já não sou o centro das vossas vidas.

Abracei-a finalmente, sentindo o seu corpo frágil tremer contra o meu peito.

— Nunca vais deixar de ser importante para nós. Só precisamos que confies nisso…

Ao regressar a casa naquela noite fria de dezembro, olhei para os meus filhos adormecidos no banco de trás do carro e pensei em todas as mães que se sentem sozinhas quando os filhos crescem e seguem os seus caminhos.

Será possível equilibrar o amor pelos nossos pais com as exigências da vida adulta sem nos perdermos pelo caminho? Ou estaremos todos condenados a viver entre o amor e a culpa?