Entre o Amor de Mãe e o Peso da Desconfiança: O Meu Silêncio Gritante

— Dona Teresa, preciso falar consigo. — A voz de Inês tremia do outro lado da linha, mas não era nervosismo; era raiva contida. — O Rui disse-me que esteve cá ontem. Faltam-me cinquenta euros na carteira. Não foi a primeira vez. E não me venha dizer que não sabe de nada.

Fiquei paralisada. Oiço o relógio da cozinha marcar cada segundo, como se cada tique-taque fosse uma acusação. O Rui, o meu filho, tinha-me visitado na véspera, sim. Trouxe-me pão quente e um sorriso cansado. Falámos pouco, mas notei-lhe as olheiras fundas e a voz baixa. Não quis perguntar muito — há dores que só se partilham quando se está pronto.

— Inês, filha… — tentei começar, mas ela interrompeu-me.

— Não me chame filha! Não depois disto. O Rui pode ser ingénuo, mas eu não sou. Sei bem que anda a juntar dinheiro para comprar um telemóvel novo. Não é segredo para ninguém que o seu velho já nem recebe mensagens.

Senti uma onda de vergonha e tristeza. Era verdade: há meses que guardava moedas do meu magro subsídio de reforma num frasco escondido atrás dos frascos de arroz. Não queria pedir nada a ninguém. Sempre fui assim — orgulhosa, talvez teimosa demais.

— Inês, nunca na vida…

— Chega! — gritou ela. — Se não foi a senhora, foi o seu filho. Mas alguém aqui está a mentir.

Desligou antes que pudesse responder. Fiquei ali, com o telefone na mão, a olhar para o vazio da sala onde as fotografias antigas me observavam em silêncio. O Rui em pequeno, com os joelhos esfolados e um sorriso sem dentes; eu e o António no nosso casamento, ele ainda vivo, ainda meu.

Oiço passos no corredor do prédio. O meu coração dispara: será o Rui? Mas é só a vizinha do lado, a Dona Amélia, que bate à porta para pedir açúcar. Tento sorrir-lhe, mas ela percebe logo que algo não está bem.

— Está tudo bem, Teresa?

— São coisas de família… — respondo, tentando não chorar.

Ela pousa a mão no meu ombro e diz baixinho:

— Não deixe que lhe roubem a paz.

Quando volto à cozinha, sento-me à mesa e olho para o frasco das moedas. Conto-as uma a uma: vinte e sete euros e quarenta cêntimos. Ainda falta tanto para conseguir comprar um telemóvel novo…

O dia arrasta-se devagar. Oiço os vizinhos a falar no pátio sobre futebol e política, mas as palavras entram-me por um ouvido e saem pelo outro. Só penso no Rui e na Inês. Onde foi que falhei como mãe? Sempre tentei dar-lhes tudo — mesmo quando não tinha nada para dar.

À noite, o telefone toca outra vez. É o Rui.

— Mãe… podemos falar?

A voz dele está rouca, quase um sussurro.

— Claro, filho.

— A Inês está muito nervosa… Ela acha mesmo que alguém lhe mexeu na carteira. Eu disse-lhe que não foste tu.

— E tu? — pergunto baixinho.

Há um silêncio pesado do outro lado.

— Eu… não sei o que pensar. Ultimamente as coisas têm estado tão estranhas cá em casa. Ela desconfia de tudo e de todos. Eu próprio já dei por mim a duvidar de mim mesmo.

Sinto as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.

— Rui, filho… eu nunca faria uma coisa dessas. Sabes disso, não sabes?

Ele suspira.

— Sei, mãe… mas às vezes sinto-me tão perdido.

Queria abraçá-lo naquele momento, como fazia quando era pequeno e tinha pesadelos à noite. Mas agora os monstros são outros — são feitos de palavras duras e silêncios pesados.

No dia seguinte, decido ir à casa deles. Levo um bolo de laranja ainda quente e o coração nas mãos. A Inês abre-me a porta com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Vim só dizer-te que não fui eu — digo-lhe antes que ela possa falar. — E se precisares de ajuda para encontrar o dinheiro ou perceber o que se passou, estou aqui.

Ela olha para mim durante uns segundos intermináveis e depois desaba em lágrimas.

— Desculpe… Eu estou tão cansada… O Rui chega tarde todos os dias, quase não fala comigo… Sinto-me sozinha nesta casa cheia de coisas por arrumar e contas por pagar…

Aproximo-me dela e abraço-a. Sinto-lhe os ombros magros a tremer contra o meu peito.

— Não estás sozinha, Inês. Tens-me a mim e tens o Rui. Só precisamos de conversar mais… confiar mais uns nos outros.

Ela limpa as lágrimas com as costas da mão.

— Eu sei… mas às vezes parece que tudo está prestes a desmoronar-se.

O Rui entra na sala nesse momento e vê-nos abraçadas. Fica parado à porta, sem saber o que dizer.

— Mãe… Inês…

Olho para ele com ternura e tristeza.

— Filhos, precisamos de falar abertamente sobre o que nos preocupa. Não podemos deixar que a desconfiança nos destrua.

Sentamo-nos os três à mesa da cozinha. Falo-lhes do meu frasco das moedas, do sonho simples de ter um telemóvel novo para poder ver as fotografias dos netos sem pedir ajuda à vizinha Amélia ou ao senhor do café da esquina.

A Inês sorri timidamente pela primeira vez em dias.

— Desculpe ter desconfiado da senhora… Eu só estava tão assustada com tudo isto…

O Rui pega-lhe na mão e olha para mim com olhos marejados.

— Temos andado tão afastados…

Ficamos ali sentados até tarde, a conversar sobre tudo: sobre dinheiro, sobre sonhos adiados, sobre mágoas antigas e medos novos. Pela primeira vez em muito tempo sinto que somos uma família outra vez — imperfeita, sim, mas unida pela vontade de recomeçar.

Quando volto para casa nessa noite, olho para o frasco das moedas com outros olhos. Talvez demore mais tempo a comprar o telemóvel novo, mas ganhei algo muito mais valioso: a esperança de que ainda podemos curar as feridas do passado.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias se perdem em silêncios e desconfianças? Quantas mães choram sozinhas por palavras mal ditas? Será que algum dia aprendemos mesmo a perdoar?