Entre o Amor de Filho e o Medo de Perder: O Dilema de Cuidar da Minha Mãe
— Não posso fazer isto, Mateus! — gritei, sentindo as lágrimas a queimarem-me os olhos. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o perfume doce da minha mãe, que pairava sempre pela casa. Ele olhou-me, cansado, mas terno.
— Ana, não podemos continuar assim. A tua mãe precisa de cuidados que tu não consegues dar sozinha. E nós… nós também precisamos de espaço para sermos felizes.
O silêncio caiu pesado entre nós. O relógio da cozinha marcava 23h17. A minha mãe dormia no quarto ao lado, respirando com dificuldade, como sempre desde o AVC. Eu sabia que Mateus tinha razão. Mas como é que se faz isto? Como é que se diz a uma mãe que ela vai para um lar?
Desde que o meu pai morreu — já lá vão cinco anos — que tudo mudou. A minha mãe deixou de ser aquela mulher forte e independente. Passou a depender de mim para tudo: tomar banho, comer, até para se lembrar dos nomes das pessoas. Eu era filha única. Não havia irmãos para dividir o peso. Só eu.
Lembro-me do dia em que Mateus entrou na minha vida. Foi numa reunião da empresa, ele recém-chegado de Braga, com aquele sotaque carregado e um sorriso tímido. Aproximou-se devagar, perguntou se eu queria almoçar com ele. E eu aceitei. Pela primeira vez em anos, senti-me vista. Senti-me mulher outra vez.
Mas a culpa nunca me largou. Cada vez que saía com Mateus, deixava a minha mãe sozinha em casa. Uma vez, cheguei e encontrei-a caída no chão da cozinha, a chorar baixinho. Disse que tinha tropeçado no tapete. Mas eu sabia que era mais do que isso: era solidão, era medo.
— Ana, precisamos falar — disse Mateus uma noite, depois de jantar.
— Sobre o quê?
— Sobre nós. Sobre a tua mãe.
O meu coração disparou. Sabia o que vinha aí.
— Não me peças para escolher — pedi-lhe, quase num sussurro.
Ele suspirou.
— Não é isso. Só quero que penses em ti também. Tu mereces viver, Ana.
Mas como é que se vive quando quem nos deu a vida precisa de nós? Como é que se fecha uma porta sabendo que do outro lado está alguém que nos ensinou a andar?
Comecei a pesquisar lares de idosos em Lisboa. Fui visitar alguns: paredes brancas, cheiro a desinfetante, velhos sentados em cadeiras de rodas a olhar para o vazio. Uma senhora chamou-me “filha” e agarrou-me a mão com força. Saí dali a correr, com vontade de vomitar.
Contei à minha mãe sobre a ideia do lar numa tarde chuvosa de novembro.
— Mãe… tenho pensado… talvez fosse melhor para ti estares num sítio onde te pudessem ajudar mais…
Ela olhou-me com aqueles olhos grandes e tristes.
— Vais mandar-me embora?
Senti-me uma traidora.
— Não é isso, mãe… só quero o melhor para ti.
Ela virou a cara para a janela e ficou calada durante horas.
Nessa noite não consegui dormir. Ouvia-a tossir no quarto ao lado e imaginava-a sozinha num lar qualquer, rodeada de estranhos. Lembrei-me das histórias que lia nos jornais: maus-tratos, solidão, abandono. E se ela morresse lá? E se eu nunca me perdoasse?
No trabalho comecei a falhar prazos. O chefe chamou-me ao gabinete.
— Ana, está tudo bem contigo?
Quis dizer-lhe que não, que nada estava bem, mas limitei-me a sorrir e dizer que era só cansaço.
Mateus começou a afastar-se. Já não me beijava como antes. Passava mais tempo no ginásio ou com os amigos do futebol.
Uma noite chegou tarde e cheirava a perfume estranho.
— Onde estiveste? — perguntei.
Ele encolheu os ombros.
— Preciso de espaço, Ana. Isto está a sufocar-me.
Senti o chão fugir-me dos pés. Estava prestes a perder tudo: o homem que amava e a mulher que me criou.
No dia seguinte fui buscar a minha mãe ao centro de saúde. Tinha ido fazer fisioterapia. Enquanto esperava por ela no corredor frio e cinzento, vi uma senhora idosa sentada sozinha num banco. Tinha os olhos perdidos no vazio e um lenço azul na cabeça.
Aproximei-me e sorri-lhe.
— Está à espera de alguém?
Ela abanou a cabeça.
— Ninguém vem buscar-me — disse baixinho.
Senti um nó na garganta. Era aquilo que eu temia para a minha mãe: ser esquecida.
Quando chegámos a casa, sentei-me ao lado dela no sofá.
— Mãe… desculpa por tudo isto. Eu só quero fazer o melhor… mas não sei qual é.
Ela pegou na minha mão com dificuldade.
— Tu és tudo o que eu tenho, filha. Não me deixes sozinha.
Chorei ali mesmo, sem vergonha.
Nos dias seguintes tentei encontrar alternativas: uma senhora para ajudar em casa, um centro de dia onde pudesse passar as tardes enquanto eu trabalhava. Mas tudo era caro demais ou tinha listas de espera intermináveis.
Mateus voltou à carga:
— Ana, eu amo-te… mas não posso viver assim para sempre. Ou vens comigo ou fico sozinho.
Olhei-o nos olhos e vi ali o ultimato que tanto temia.
— Não posso abandonar a minha mãe — respondi finalmente, com uma certeza dolorosa.
Ele saiu porta fora sem olhar para trás.
Fiquei ali sentada no chão da cozinha durante horas, abraçada às pernas, sentindo o vazio crescer dentro de mim.
Os dias passaram lentos e cinzentos. A minha mãe piorava aos poucos; eu envelhecia por dentro cada vez mais depressa. Mas havia momentos pequenos de felicidade: quando ela sorria ao ver as novelas da tarde; quando me pedia para lhe ler poesia; quando me dizia “obrigada por cuidares de mim”.
Às vezes perguntava-me se tinha feito a escolha certa. Se algum dia voltaria a ser feliz como mulher e não apenas como filha cuidadora. Se algum dia alguém me amaria apesar deste fardo invisível.
Hoje escrevo-vos porque preciso de saber: alguém já passou por isto? Como é que se escolhe entre quem nos deu tudo e quem nos pode dar um futuro? Será egoísmo querer viver? Ou é egoísmo pedir à mãe para ir para um lar?