Entre o Amor de Duas Mães: O Peso das Escolhas
— Então é assim, Mariana? Agora a tua sogra vale mais do que a tua própria mãe? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de mágoa e raiva. Eu estava de costas para ela, lavando a loiça, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam cair. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar.
Respirei fundo antes de responder, mas a voz saiu-me trémula:
— Mãe, não é isso… A Dona Lurdes está muito doente. O António não consegue dar conta sozinho. Eu só estou a ajudar.
Ela bateu com a mão na mesa, fazendo saltar as chávenas.
— E eu? Achas que eu não preciso de ti? Achas que eu não sinto falta da minha filha? Desde que casaste parece que desapareceste!
As palavras dela feriram-me mais do que eu queria admitir. Senti uma onda de culpa a invadir-me. A verdade é que desde que a minha sogra ficou acamada, há três meses, eu passava mais tempo na casa dela do que na minha própria casa ou com a minha mãe. O António trabalhava até tarde e o irmão dele vivia em França. Tudo recaía sobre mim.
Lembro-me do dia em que tudo começou. Estava a preparar o jantar quando o telefone tocou. Era o António, aflito:
— Mariana, a minha mãe caiu. Está no hospital. Podes ir lá?
Sem pensar duas vezes, larguei tudo e fui. Desde então, a Dona Lurdes nunca mais recuperou totalmente. Precisa de ajuda para tudo: tomar banho, comer, até para se levantar da cama.
No início, a minha mãe compreendeu. Até me ajudou algumas vezes. Mas à medida que os dias se transformaram em semanas, e as semanas em meses, ela começou a ressentir-se.
— Mariana, tu não és enfermeira! — dizia ela sempre que me via sair apressada com uma marmita para a sogra. — E se fosse eu? Ias deixar-me assim?
Essas palavras assombravam-me. Será que estava mesmo a abandonar a minha mãe? Ou estava apenas a tentar fazer o que era certo?
O António tentava apoiar-me, mas também ele estava exausto. Muitas noites discutíamos baixinho para não acordar os miúdos:
— Mariana, eu sei que é difícil… Mas a minha mãe precisa de nós.
— E eu? — perguntei-lhe uma vez, num sussurro quase inaudível. — Quem cuida de mim?
Ele abraçou-me, mas o abraço dele estava cheio de cansaço e preocupação.
A situação piorou quando o meu pai adoeceu com uma gripe forte. A minha mãe ligou-me várias vezes:
— Mariana, preciso de ti aqui! O teu pai está mal e eu não dou conta sozinha!
Corri para casa dela assim que pude, mas ela já estava magoada demais.
— Se fosse a tua sogra já cá estavas há horas! — atirou ela quando entrei pela porta.
Senti-me dividida ao meio. O António precisava de mim. A minha mãe precisava de mim. E eu sentia-me cada vez mais pequena, esmagada pelo peso das expectativas.
Uma noite, depois de todos adormecerem, sentei-me na varanda com uma manta sobre os ombros e chorei baixinho. Lembrei-me da infância, quando a minha mãe me embalava nos braços e prometia que nunca me deixaria sozinha. Agora era eu quem tinha de escolher entre duas mães: a que me deu à luz e a que me acolheu como filha.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Tentei dividir-me entre as duas casas, mas era impossível agradar a todos. O António começou a ficar impaciente:
— Mariana, não podes continuar assim! Vais acabar por adoecer tu também.
A minha mãe ligava-me todos os dias:
— Já não te reconheço, filha. Sinto que te perdi.
Comecei a evitar atender o telefone. Sentia vergonha por não conseguir ser suficiente para todos.
No trabalho, os colegas notavam o meu ar cansado.
— Está tudo bem contigo? — perguntou-me a Ana um dia à hora do almoço.
Desatei a chorar ali mesmo, no refeitório da fábrica.
— Não sei o que fazer… Sinto que estou a falhar como filha, como mulher, como mãe…
Ela apertou-me a mão:
— Não és só tu. Todas nós passamos por isso em algum momento. Mas tens de pedir ajuda. Não podes carregar tudo sozinha.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Falei com o António e sugeri contratar uma senhora para ajudar com a Dona Lurdes algumas horas por dia. Ele hesitou por causa do dinheiro, mas acabou por concordar.
Com algum tempo livre finalmente consegui passar uma tarde inteira com os meus pais. Fizemos arroz doce como antigamente e rimos das histórias antigas. A minha mãe chorou ao despedir-se:
— Só quero ter-te por perto, filha…
Abracei-a com força:
— Eu também preciso de ti, mãe.
Aos poucos as coisas foram melhorando. Ainda há dias difíceis, ainda há ressentimentos e culpas mal resolvidas. Mas aprendi que pedir ajuda não é sinal de fraqueza — é um ato de amor próprio e pelos outros.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas entre o dever e o amor? Quantas vezes sacrificamos o nosso bem-estar para não desiludir ninguém? Será possível agradar a todos sem nos perdermos pelo caminho?
E vocês? Já sentiram este peso nas vossas vidas? Como encontraram equilíbrio entre cuidar dos outros e cuidar de vocês próprios?