Entre Duas Mães: O Peso da Escolha
— Vais mesmo deixar-me sozinha outra vez, Mariana? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor, carregada de mágoa e cansaço. Eu já tinha a mala na mão, o casaco pendurado no braço e o coração apertado como nunca.
Olhei para trás, para aquela mulher que me criou sozinha, que nunca me deixou faltar nada, mesmo quando o dinheiro mal chegava para pagar a renda do nosso pequeno apartamento em Almada. O rosto dela estava marcado por rugas que não eram só da idade, mas de noites mal dormidas e preocupações acumuladas. Senti uma pontada de culpa tão forte que quase larguei tudo ali mesmo.
— Mãe, eu volto logo… A Dona Emília não tem mais ninguém. O António está a trabalhar até tarde e ela precisa de mim — tentei explicar, mas a minha voz saiu trémula, quase inaudível.
Ela virou-me as costas, foi para a cozinha e começou a lavar a loiça com força, como se pudesse esfregar dali toda a dor que sentia. Fiquei parada à porta, sem saber se devia ir ou ficar. O telefone tocou. Era o António.
— Mariana, a minha mãe está pior. Diz que não consegue levantar-se da cama. Podes ir lá agora? — A voz dele era urgente, mas também cansada. Desde que o pai dele morreu, há dois anos, tudo mudou. A Dona Emília ficou amarga, desconfiada de tudo e de todos. Eu era a única pessoa em quem ela confiava minimamente.
— Vou já — respondi, tentando não chorar.
Saí de casa da minha mãe com o coração partido. No autocarro para Benfica, olhei pela janela e vi as ruas cheias de gente apressada, cada um com os seus problemas. Perguntei-me quantas pessoas estariam ali, naquele momento, a sentir-se tão divididas como eu.
Quando cheguei ao prédio antigo onde morava a Dona Emília, senti logo o cheiro a mofo misturado com o perfume barato que ela usava desde sempre. Subi as escadas devagar, tentando ganhar coragem para enfrentar mais uma noite de discussões veladas e silêncios pesados.
— Mariana? És tu? — ouvi a voz dela, fraca mas ansiosa.
— Sou eu, Dona Emília. Trouxe-lhe sopa e pão fresco — disse, tentando soar animada.
Ela olhou para mim com olhos vermelhos de tanto chorar. — O António não veio? — perguntou logo.
— Ele está a trabalhar. Mas eu fico consigo esta noite — respondi.
Ela suspirou fundo e virou-se para o lado. Fui até à cozinha preparar-lhe o jantar. Enquanto mexia a sopa, ouvi-a murmurar: — No fim, estamos sempre sozinhos…
Sentei-me ao lado dela na cama e tentei alimentá-la. Ela recusava-se a comer, dizia que não tinha fome. Insisti até ela aceitar umas colheradas. Depois ficou a olhar para mim em silêncio.
— Sabes, Mariana… Eu nunca quis ser um peso para ninguém. Mas agora não tenho escolha — disse ela, com lágrimas nos olhos.
Abracei-a sem saber o que dizer. Senti-me pequena diante daquela dor tão parecida com a da minha mãe. As duas mulheres mais importantes da minha vida estavam a sofrer e eu não conseguia aliviar o sofrimento de nenhuma delas.
Nessa noite dormi mal. Acordei várias vezes com os gemidos da Dona Emília e com mensagens da minha mãe: “Já chegaste bem?”, “Não te esqueças de mim”. Cada mensagem era uma faca no peito.
De manhã preparei o pequeno-almoço para a Dona Emília e liguei à minha mãe.
— Mãe, desculpa não ter ido dormir contigo… — comecei.
— Não faz mal. Já estou habituada — respondeu ela friamente.
Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Queria gritar que estava a fazer o melhor que podia, mas sabia que nada do que dissesse ia aliviar aquela mágoa antiga.
Os dias foram passando assim: corria de um lado para o outro, dividida entre duas casas, dois mundos, duas mães. O António tentava ajudar quando podia, mas o trabalho dele era exigente e ele próprio andava exausto.
Uma noite cheguei a casa da minha mãe e encontrei-a sentada à mesa da cozinha com uma carta na mão.
— O que é isso? — perguntei.
— É do hospital. Tenho consulta marcada para daqui a duas semanas… Sozinha — disse ela, olhando-me nos olhos.
Senti um nó na garganta. — Eu vou contigo! — prometi logo.
Ela abanou a cabeça. — Não prometas o que não podes cumprir, Mariana.
Fiquei ali sentada ao lado dela em silêncio. Lembrei-me de quando era pequena e ela me levava ao parque aos domingos, mesmo cansada depois de uma semana inteira a limpar casas dos outros. Lembrei-me das noites em que me embalava nos braços porque eu tinha medo do escuro. Agora era ela quem tinha medo: medo de ficar sozinha, medo de ser esquecida pela única filha.
No dia seguinte fui trabalhar como se fosse um autómato. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu sorria sem vontade. Ninguém sabia do peso que eu carregava nos ombros.
Uma tarde recebi uma chamada do hospital: a Dona Emília tinha caído em casa e estava internada. Corri para lá sem pensar em mais nada. Quando cheguei ao quarto dela vi-a ligada a máquinas, tão frágil como nunca a tinha visto.
O António chegou pouco depois e abraçou-me com força. Chorámos juntos em silêncio.
Nos dias seguintes dividi-me entre o hospital e a casa da minha mãe. Ela começou a perceber que algo estava errado e um dia confrontou-me:
— Mariana, tu amas mais aquela mulher do que a mim?
Fiquei sem palavras. Como explicar-lhe que não era uma questão de amor? Que era uma questão de necessidade? Que eu só queria fazer o certo?
— Mãe… Eu amo-te mais do que tudo neste mundo. Mas ela está sozinha… E eu também sou família dela agora…
Ela chorou baixinho e eu abracei-a como ela me abraçava quando eu era criança.
A Dona Emília acabou por recuperar lentamente, mas nunca mais voltou a ser a mesma. O António começou a passar mais tempo com ela e eu pude finalmente respirar um pouco melhor.
Mas nada voltou ao normal entre mim e a minha mãe. O ressentimento ficou ali, como uma sombra entre nós.
Hoje olho para trás e pergunto-me se fiz as escolhas certas. Será possível dividir o coração sem magoar ninguém? Ou será que estamos todos condenados a falhar com quem mais amamos?
E vocês? Já sentiram este peso? Como se escolhe entre duas mães?