Entre a Culpa e o Amor: O Dia em que Deixei a Minha Mãe no Lar

— Não me deixes aqui, filho. — A voz da minha mãe, trémula e quase infantil, ecoou pelo corredor frio do lar. Senti o peito apertar, como se alguém me tivesse arrancado o ar dos pulmões. O cheiro a desinfetante misturava-se com o perfume suave do seu lenço, aquele que ela usava sempre que queria sentir-se bonita.

Olhei para a enfermeira, que me devolveu um sorriso profissional, mas vazio de calor. — Vai correr tudo bem, Sr. António. A sua mãe vai ser bem tratada aqui.

Mas como é que ela podia saber? Como é que alguém podia garantir isso? A minha mãe, Maria do Carmo, foi tudo para mim: mãe, pai, amiga, confidente. Depois da morte do meu pai, éramos só nós dois contra o mundo. E agora eu estava ali, a deixá-la num lugar estranho, rodeada de desconhecidos.

A minha irmã, Teresa, não apareceu. Disse que não conseguia lidar com a situação. “És tu o mais velho, António. Sempre foste tu a resolver tudo.” Mas naquele momento, sentia-me uma criança perdida.

— Mãe… — tentei segurar-lhe a mão, mas ela afastou-a devagar. Os olhos dela estavam cheios de lágrimas e de uma mágoa que nunca pensei ver ali. — Eu venho cá todos os dias. Prometo.

Ela não respondeu. Limitou-se a olhar pela janela, para o jardim onde algumas senhoras jogavam cartas debaixo de um toldo. O céu estava cinzento e pesado, como o meu coração.

Quando saí do lar, sentei-me no carro e chorei como não chorava desde miúdo. Lembrei-me das noites em que ela ficava acordada comigo quando eu tinha febre, das vezes em que me defendia dos miúdos maus na escola, dos bolos de laranja ao domingo. Agora era eu quem devia cuidar dela — mas falhei.

Os dias seguintes foram um tormento. Ia trabalhar mecanicamente, respondia aos colegas com monossílabos. À noite, ligava à Teresa:

— Não aguento isto. Sinto-me um monstro.

Ela suspirava do outro lado da linha:

— Achas que eu não sinto? Mas não temos outra hipótese. Ela já não se lembra de tomar os medicamentos, quase incendiou a casa na semana passada…

— Mas ela está triste, Teresa! Não fala com ninguém! — gritei.

— E achas que em casa ia ser diferente? Não podemos estar sempre com ela…

A discussão terminava sempre assim: num silêncio pesado, cheio de coisas por dizer.

Comecei a visitar a minha mãe todos os dias depois do trabalho. No início, ela mal falava comigo. Ficava sentada na cadeira junto à janela, olhando para fora como se esperasse alguém que nunca mais vinha. Um dia levei-lhe um bolo de laranja.

— Fizeste tu? — perguntou, desconfiada.

— Sim, mãe. Como tu me ensinaste.

Ela provou uma fatia pequena e sorriu por um segundo fugaz. Mas logo voltou ao seu silêncio.

As outras famílias vinham visitar os seus idosos ao fim de semana. Vi filhos que traziam flores, netos que corriam pelos corredores, risos e abraços que me faziam sentir ainda mais sozinho. Uma tarde ouvi uma senhora dizer à filha:

— Sabes, querida? Aqui ninguém nos quer verdadeiramente. Só vêm porque têm obrigação.

Essas palavras ficaram-me gravadas na pele como uma queimadura.

Certa noite sonhei com a minha mãe jovem, a dançar com o meu pai numa festa popular em Vila Real. Acordei com lágrimas nos olhos e uma certeza: precisava de fazer mais por ela.

Falei com a diretora do lar:

— A minha mãe está muito isolada. Não há atividades para ela? Não pode sair mais vezes?

Ela explicou-me as limitações: falta de pessoal, regras apertadas por causa das doenças… Senti-me impotente outra vez.

No domingo seguinte levei-lhe fotografias antigas: do casamento dela, das férias na Figueira da Foz, dos netos pequenos. Ela pegou numa delas e sorriu:

— O teu pai era tão bonito…

— Era sim, mãe.

— E tu eras tão pequenino…

Por um momento pareceu voltar a ser quem era antes da doença. Falámos durante quase uma hora sobre o passado — sobre as festas da aldeia, sobre o cheiro das castanhas assadas no inverno.

Mas quando me despedi para ir embora, agarrou-me o braço com força:

— Não me deixes aqui outra vez…

Saí dali destroçado.

Na segunda-feira seguinte recebi uma chamada do lar: a minha mãe tinha caído no quarto durante a noite. Fui a correr para lá; encontrei-a com um arranhão na testa e um olhar perdido.

— António… — murmurou ela — Leva-me para casa…

Sentei-me ao lado dela e chorei baixinho. Senti raiva de mim próprio, raiva do sistema que não apoia as famílias como devia, raiva da doença que lhe roubou a memória e a alegria.

Quando contei à Teresa sobre a queda, ela chorou também:

— Se calhar devíamos ter tentado mais tempo em casa…

— E como? Tu tens dois filhos pequenos e eu trabalho o dia todo! Não somos super-heróis!

A culpa corroía-nos por dentro.

No Natal levei-a para passar o dia connosco em casa. No início parecia feliz — riu-se com os netos, comeu bacalhau com broa como antigamente. Mas ao fim da tarde ficou confusa; perguntou várias vezes onde estava o meu pai, porque é que havia tantas pessoas estranhas em casa.

Quando a levei de volta ao lar naquela noite gelada de dezembro, senti que estava a partir-lhe o coração outra vez.

Os meses passaram e fui aprendendo a viver com esta dor surda. A minha mãe foi-se apagando aos poucos; já raramente me reconhece quando entro no quarto. Mas às vezes segura-me na mão e diz:

— Obrigada por cuidares de mim.

Nesses momentos sinto um alívio breve — mas logo volta a culpa: será que fiz mesmo tudo o que podia? Será que algum dia vou perdoar-me?

Agora escrevo estas palavras à procura de consolo ou compreensão. Será que alguém já passou pelo mesmo? Como se aprende a viver com esta culpa? Será possível amar alguém tanto e mesmo assim sentir que falhámos?

Talvez nunca encontre respostas definitivas. Mas pergunto-me: quantos filhos em Portugal vivem este dilema todos os dias? E vocês — como lidaram com esta dor?