Abandonada na Infância: O Amor de uma Avó e os Segredos de uma Mãe

— Não chores, menina. A tua mãe vai voltar — dizia a minha avó, enquanto me embalava no velho sofá da sala, o cheiro a café acabado de fazer misturando-se com o perfume suave das flores que ela colhia todas as manhãs. Mas eu sabia, mesmo com apenas seis anos, que a minha mãe não ia voltar. Não naquele dia, nem no seguinte. Ela tinha-me deixado ali, com uma mala pequena e um beijo apressado na testa, enquanto o novo namorado a esperava no carro, motor ligado e olhos impacientes.

Durante anos, o rosto da minha mãe era apenas uma fotografia desbotada na cómoda do meu quarto. Cresci com a minha avó, Dona Amélia, uma mulher de mãos calejadas e coração imenso. Ela fazia questão de me lembrar todos os dias que eu era amada, mesmo quando o mundo parecia querer provar o contrário. A nossa casa em Setúbal era pequena, mas cheia de vida: o rádio sempre ligado nas manhãs de sábado, o cheiro a pão quente vindo da padaria da esquina, e as conversas longas à mesa da cozinha, onde ela me ensinava a fazer contas e a distinguir as ervas do quintal.

Mas havia sempre um vazio. Um silêncio pesado quando as outras crianças falavam das mães nas reuniões da escola. Eu inventava histórias: “A minha mãe trabalha muito longe”, “Ela manda cartas todas as semanas”. Mentiras inocentes para proteger um coração frágil.

Os anos passaram e aprendi a viver com essa ausência. Tornei-me uma adolescente reservada, desconfiada dos afetos fáceis. A minha avó era tudo para mim. Quando adoecia, eu ficava noites em claro ao lado da sua cama, segurando-lhe a mão e rezando baixinho para que não me deixasse também.

Foi numa dessas noites que tudo mudou. O telefone tocou às três da manhã. A minha avó atendeu com voz trémula:

— Sim? Quem fala?

Do outro lado, uma voz que eu não ouvia há mais de dez anos: — Mãe? Sou eu, a Teresa.

O silêncio foi tão denso que quase me sufocou. A minha avó olhou para mim, lágrimas nos olhos.

— A tua mãe quer falar contigo.

Peguei no telefone com mãos trémulas:

— Olá?

— Olá, filha… — A voz dela soava estranha, distante. — Preciso de falar contigo. Podemos encontrar-nos?

O encontro foi marcado para um café no centro da cidade. Fui com o coração aos pulos, sem saber se devia sentir raiva ou esperança. Quando a vi entrar, percebi que pouco tinha mudado: o cabelo loiro preso num rabo-de-cavalo apressado, os olhos castanhos inquietos.

— Estás crescida — disse ela, tentando sorrir.

— O que queres? — perguntei sem rodeios.

Ela suspirou:

— As coisas não correram como eu esperava… O António deixou-me. Estou sem casa e… pensei que talvez pudéssemos recomeçar.

Senti um nó na garganta. Não havia pedido de desculpa, nem sequer uma explicação para os anos de silêncio. Apenas necessidade.

— Recomeçar? Depois de tudo? — A minha voz saiu mais alta do que queria.

Ela olhou para baixo:

— Eu sei que errei… Mas és minha filha.

Saí do café sem olhar para trás. Passei dias em conflito: parte de mim queria acreditar que ela sentia a minha falta; outra parte sabia que era apenas mais um capítulo do seu egoísmo.

A minha avó tentou apaziguar:

— Ela é tua mãe… Talvez mereça uma segunda oportunidade.

Mas como dar oportunidades a quem nunca as pediu?

As semanas passaram e a Teresa insistia em ligar, mandar mensagens. Um dia apareceu à porta de casa com uma mala na mão.

— Só preciso de ficar uns tempos — pediu à minha avó.

A casa encheu-se de tensão. As conversas à mesa tornaram-se silêncios constrangedores. A Teresa ocupava o meu quarto antigo e eu dormia no sofá. Comecei a chegar mais tarde da escola só para evitar aquele ambiente pesado.

Uma noite ouvi-as discutir na cozinha:

— Não podes simplesmente aparecer e esperar que tudo volte ao normal! — dizia a minha avó.

— Eu sou mãe dela! Tenho direito!

— Direito? Onde estavam esses direitos quando ela chorava por ti todas as noites?

Tapei os ouvidos com a almofada, mas as palavras ecoavam dentro de mim.

Com o tempo percebi que a Teresa não procurava reconciliação; procurava abrigo. Arranjou um emprego temporário numa loja do centro mas gastava o pouco dinheiro em saídas e roupas novas. Quando lhe pedi para conversar sobre o passado, fugia ao assunto:

— Para quê mexer no que já passou? O importante é estarmos juntas agora.

Mas não estávamos juntas. Éramos estranhas sob o mesmo teto.

A situação tornou-se insustentável quando descobri que ela andava a pedir dinheiro emprestado aos vizinhos em meu nome. Fui confrontada pela Dona Lurdes do terceiro andar:

— Olha lá, menina Ana, vais pagar aquele dinheiro que a tua mãe pediu?

Senti vergonha e raiva. Confrontei a Teresa:

— Como pudeste fazer isto?

Ela encolheu os ombros:

— Estava desesperada…

Nesse momento percebi que nunca seria suficiente para ela. Que o amor de mãe não se impõe nem se compra; constrói-se dia após dia, gesto após gesto — como fazia a minha avó.

Decidi sair de casa assim que terminei o secundário. Arranjei trabalho numa pastelaria e aluguei um quarto pequeno perto do rio Sado. A minha avó chorou muito nesse dia:

— Não vás embora…

Abracei-a forte:

— Preciso aprender a viver por mim mesma.

A Teresa ficou mais algum tempo com a minha avó até arranjar outro namorado e desaparecer novamente. Nunca mais voltou.

Hoje sou adulta e olho para trás com um misto de tristeza e gratidão. Tristeza por aquilo que nunca tive; gratidão pelo amor incondicional da minha avó, que me ensinou o verdadeiro significado de família.

Às vezes pergunto-me: será possível perdoar alguém que nunca pediu perdão? Ou será que algumas feridas só cicatrizam quando aceitamos que certas pessoas nunca vão mudar?