A Verdade Escondida por Trás das Contas de Aquecimento da Minha Mãe
— Filha, preciso falar contigo… — a voz da minha mãe soava trémula ao telefone, como se cada palavra pesasse mais do que a anterior. — Este inverno vai ser difícil. As contas do gás estão a subir e… não sei se vou conseguir pagar tudo sozinha.
Fiquei em silêncio por um momento, sentindo o peso da responsabilidade a cair-me nos ombros. O meu marido, Rui, olhou-me de lado, preocupado. Desde que o meu pai morreu, há três anos, a minha mãe vivia sozinha na pequena casa em Vila Nova de Poiares. Eu e a minha irmã, Mariana, morávamos em Coimbra, a menos de uma hora de distância, mas parecia que estávamos em mundos diferentes.
— Claro, mãe. Eu e o Rui ajudamos no que pudermos — respondi, tentando soar mais confiante do que me sentia. — Já falaste com a Mariana?
— Falei… mas ela disse que este mês está apertada. — A voz dela vacilou. — Não quero incomodar-vos, mas não sei o que fazer.
Desliguei o telefone com o coração apertado. O Rui aproximou-se e abraçou-me.
— Achas que está tudo bem com a tua mãe? — perguntou ele.
— Não sei… Ela nunca pediu ajuda assim antes. — Suspirei. — Vou falar com a Mariana amanhã.
No dia seguinte, liguei à minha irmã. Ela atendeu rapidamente, como se estivesse à espera da chamada.
— Olha, já sei da mãe — disse ela sem rodeios. — Eu também lhe dei algum dinheiro no mês passado. Mas ela voltou a pedir agora…
— Achas estranho? — perguntei.
— Muito. A mãe sempre foi orgulhosa demais para pedir fosse o que fosse. E a casa dela não é assim tão fria…
Concordámos em ir visitá-la no fim de semana seguinte. Quando chegámos, encontrámo-la sentada à mesa da cozinha, as mãos entrelaçadas e os olhos vermelhos.
— Mãe, viemos ver como estás — disse Mariana, tentando soar casual.
Ela sorriu, mas o sorriso não lhe chegou aos olhos.
— Estou bem, filhas. Só estou cansada…
O almoço foi estranho. A mãe mal tocou na comida e evitava olhar-nos nos olhos. Quando o Rui sugeriu verificar a caldeira para ver se havia algum problema técnico que justificasse as contas altas, ela ficou nervosa.
— Não é preciso! Está tudo bem! — exclamou ela, levantando-se abruptamente.
Eu e Mariana trocámos olhares. Algo não batia certo.
Depois do almoço, enquanto a mãe lavava a loiça, fui ao quarto dela buscar um casaco para sair ao jardim. Ao abrir o roupeiro, reparei numa caixa de sapatos escondida atrás de umas mantas. A curiosidade falou mais alto e abri-a: estava cheia de envelopes vazios e alguns papéis de transferências bancárias.
Chamei Mariana em silêncio e mostrei-lhe o que tinha encontrado.
— O que é isto? — sussurrou ela.
Começámos a ler os papéis: transferências para uma conta desconhecida, sempre no mesmo valor dos montantes que dávamos à mãe. Havia também cartas escritas à mão, assinadas por alguém chamado António.
O coração batia-me descompassado quando confrontámos a mãe na cozinha.
— Mãe… quem é o António? E por que estás a enviar-lhe dinheiro?
Ela ficou pálida como a cal e deixou cair um prato ao chão.
— Não têm nada a ver com isso! — gritou ela, com uma fúria que nunca lhe tínhamos visto antes.
— Mãe, estamos preocupadas! Achávamos que precisavas de ajuda para ti! — insisti eu.
Ela desabou numa cadeira e começou a chorar convulsivamente.
— O António… é um amigo antigo do vosso pai. Ele ajudou-me muito quando o vosso pai morreu. Agora está doente e precisa de dinheiro para os medicamentos… Eu só queria retribuir o que ele fez por mim.
Ficámos em silêncio. Mariana foi a primeira a reagir:
— Mas mãe… tu não tens condições para ajudar ninguém! E mentiste-nos!
A mãe levantou-se de rompante:
— Vocês não percebem! Depois que o vosso pai morreu, senti-me tão sozinha… O António ligava-me todos os dias, vinha cá tomar café… Era como se tivesse alguém com quem falar. Agora ele precisa de mim!
O Rui entrou na cozinha nesse momento, atraído pelos gritos.
— Está tudo bem?
Olhei para ele e depois para a minha mãe. Senti uma mistura de raiva e compaixão. Ela estava sozinha há tanto tempo… Será que era assim tão errado querer ajudar alguém?
Nos dias seguintes, eu e Mariana discutimos muito sobre o que fazer. Devíamos impedir a mãe de continuar a enviar dinheiro? Ou aceitar que era uma escolha dela?
Decidimos procurar saber mais sobre o tal António. Fomos discretamente à vila perguntar por ele. Descobrimos que era conhecido por pedir dinheiro a várias pessoas e que tinha fama de manipular mulheres mais velhas e solitárias.
Quando confrontámos a mãe com isto, ela recusou-se a acreditar.
— Vocês só querem controlar-me! Eu não sou uma criança!
A relação ficou tensa durante semanas. As chamadas tornaram-se frias e distantes. Senti-me culpada por desconfiar dela, mas também furiosa por ela não ver o óbvio.
Um dia, recebi uma chamada do hospital: a minha mãe tinha caído em casa e partido o braço. Corri para lá com o coração nas mãos. Quando cheguei ao quarto dela, vi-a tão frágil na cama que todas as mágoas desapareceram num instante.
— Desculpa, filha… — murmurou ela com lágrimas nos olhos. — Só queria sentir-me útil outra vez…
Abracei-a com força.
Depois disso, sentámo-nos as três e conversámos como nunca antes. Falámos sobre solidão, sobre envelhecer sem companhia, sobre como é difícil pedir ajuda sem sentir vergonha ou medo de ser um peso para os outros.
Ajudámos a mãe a procurar atividades na vila, grupos de leitura e até um clube de costura onde fez novas amigas. Aos poucos, ela foi recuperando alguma alegria e deixou de enviar dinheiro ao António.
Hoje olho para trás e penso: quantos segredos cabem dentro de uma família? Quantas vezes julgamos sem tentar compreender? Será que algum dia conhecemos verdadeiramente quem amamos?