À Sombra da Minha Mãe – Um Fim de Semana em Coimbra que Mudou Tudo

— Não acredito que vais mesmo sair assim, Miguel! — A voz da minha mãe ecoou pela sala, cortando o riso dos meus amigos como uma faca afiada. Senti o calor subir-me ao rosto, enquanto olhava para as minhas calças de ganga gastas e para a t-shirt simples. — Achas que isso é roupa para um jantar? — insistiu ela, cruzando os braços e lançando um olhar fulminante à minha mulher, Sofia, como se fosse ela a culpada pela minha escolha.

Os meus amigos, o Rui e a Joana, tentaram disfarçar o embaraço, mexendo nos copos de vinho. Sofia apertou-me a mão debaixo da mesa, mas eu sentia-me pequeno, como um miúdo apanhado a fazer asneira. Tinha 34 anos, era casado, tinha um emprego estável em Lisboa e, ainda assim, ali estava eu — reduzido a um adolescente inseguro perante a autoridade da minha mãe.

Aquele fim de semana era suposto ser especial. Tinha convidado os meus amigos para conhecerem Coimbra, a cidade onde cresci e onde os meus pais ainda viviam. Sofia estava entusiasmada; queria mostrar-lhes o Mosteiro de Santa Clara, os bares do Quebra-Costas, os recantos do Mondego. Mas bastou uma noite para tudo descambar.

— Miguel, não percebo porque insistes em ser assim — continuou a minha mãe. — Sempre foste teimoso. E tu, Sofia, não lhe dizes nada? — O tom era acusatório, como se Sofia tivesse falhado numa missão secreta de me transformar num homem à imagem dela.

Sofia respirou fundo. — Dona Helena, acho que o Miguel está bem assim. O importante é estarmos juntos.

A minha mãe bufou. — Claro, claro… Hoje em dia já ninguém tem respeito por nada.

O meu pai mantinha-se calado no canto da sala, os olhos fixos na televisão desligada. Era sempre assim: ele nunca se metia. Eu sentia-me sozinho naquela trincheira familiar.

Depois do jantar, Rui tentou animar-me: — Não ligues, pá. As mães são todas iguais.

Mas não era verdade. A mãe do Rui era carinhosa, ria-se das piadas dele e aceitava-lhe as escolhas. A minha mãe era uma força da natureza — controladora, exigente e incapaz de aceitar que eu era um adulto com vida própria.

Na manhã seguinte, acordei com uma mensagem da minha mãe: “Quando acordares vem à cozinha.” Desci as escadas em silêncio. Ela estava sentada à mesa com uma chávena de café nas mãos.

— Miguel, precisamos de conversar. — O tom era mais calmo, mas senti o peso das palavras.

— Mãe, ontem exageraste… — tentei começar.

— Exagerei? Eu só quero o melhor para ti! Não percebes? — Os olhos dela brilhavam com lágrimas contidas. — Tu eras tão promissor… E agora vejo-te assim… perdido.

— Perdido? Tenho uma vida em Lisboa, um emprego… Estou casado! — A minha voz saiu mais alta do que queria.

— Casado… — Ela suspirou. — Não é isso que me preocupa. Preocupa-me veres-te afastar da família. Preocupa-me veres-te mudar por causa dela.

— Por causa da Sofia? — Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. — A Sofia não me mudou. Eu cresci! Não posso ser sempre o teu menino.

Ela chorou baixinho. Senti-me cruel e ao mesmo tempo livre por finalmente dizer aquilo em voz alta.

Voltei para o quarto e encontrei Sofia sentada na cama, olhos vermelhos.

— Ouvi tudo… — murmurou ela. — Miguel, eu não quero ser o motivo de conflito entre ti e a tua mãe.

— Não és tu… É ela que não aceita que eu cresci.

Sofia olhou-me nos olhos: — E tu? Aceitas?

Fiquei sem resposta. Talvez nunca tivesse realmente cortado o cordão umbilical. Talvez ainda vivesse à sombra das expectativas dela.

O resto do fim de semana foi um desfile de silêncios constrangedores e sorrisos forçados. Os meus amigos perceberam que algo estava errado e foram embora mais cedo do que planeado. No carro de regresso a Lisboa, Sofia manteve-se calada durante quilómetros.

Quando finalmente falou, foi como se abrisse uma ferida antiga:

— Miguel… Eu amo-te. Mas não posso viver numa guerra constante com a tua mãe. Ou tu decides quem és e o que queres… ou eu não aguento mais.

As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. No trabalho distraía-me facilmente; em casa evitava atender as chamadas da minha mãe. Sentia-me dividido entre dois mundos: o filho obediente e o homem livre que queria ser.

Uma noite, depois de mais uma discussão com Sofia sobre a minha incapacidade de impor limites à minha mãe, sentei-me sozinho na varanda do nosso apartamento em Lisboa. Olhei para as luzes da cidade e perguntei-me: quem sou eu sem as expectativas dos outros?

Decidi procurar ajuda. Comecei a ir a sessões com uma psicóloga chamada Dra. Teresa. Nas primeiras sessões quase não falei; sentia vergonha por precisar de ajuda para algo tão básico como ser adulto.

— Miguel, porque acha que precisa sempre da aprovação da sua mãe? — perguntou ela numa das sessões.

— Porque… porque tenho medo de a perder — respondi finalmente.

— E se se perder a si próprio?

A pergunta ficou a pairar no ar como uma ameaça silenciosa.

Com o tempo fui aprendendo a dizer “não”. A primeira vez que recusei um convite para ir passar o fim de semana a Coimbra foi um choque para a minha mãe.

— Mas porquê? O que é que tens aí em Lisboa que seja mais importante do que nós?

— Mãe… preciso de tempo para mim e para a Sofia. Somos uma família agora também.

Ela chorou ao telefone; eu chorei depois de desligar. Mas não voltei atrás.

A relação com Sofia melhorou lentamente. Começámos a sair mais juntos, a fazer planos só nossos sem pensar se agradavam aos meus pais ou não. Pela primeira vez senti-me dono do meu destino.

Mas as feridas familiares não desaparecem facilmente. No Natal seguinte fomos a Coimbra por insistência da Sofia — “É importante tentar”, disse ela. O jantar foi tenso; as conversas superficiais; os olhares carregados de tudo aquilo que nunca se disse.

No final da noite, quando já todos dormiam, sentei-me na cozinha com a minha mãe.

— Mãe… Eu amo-te. Mas preciso que me deixes viver à minha maneira.

Ela olhou-me longamente antes de responder:

— Eu só tenho medo de te perder…

Abracei-a como há muito não fazia. Percebi então que o medo dela era igual ao meu: medo de perder quem amamos quando deixamos de ser quem esperam que sejamos.

Hoje olho para trás e vejo aquele fim de semana em Coimbra como um ponto de viragem. Doeu crescer; doeu magoar quem amo para poder amar-me também.

Pergunto-me: quantos de nós vivem à sombra das expectativas dos outros? Quantos sacrificam a própria felicidade por medo de desiludir? Será possível amar sem sufocar? O que acham vocês?