A Casa Que Nunca Foi Minha: Entre o Amor de Mãe e a Dor de Filho
— Não podes estar a falar a sério, mãe! — gritei, sentindo o peito apertar, as mãos a tremerem de raiva e incredulidade. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o amargo da notícia que me acabava de cair em cima.
A minha mãe olhou-me com aqueles olhos cansados, mas firmes, que sempre souberam impor respeito. — O que queres que faça, Miguel? Os teus filhos precisam de estabilidade. A Andreia não tem para onde ir com eles. Tu tens o teu apartamento, eles só têm aquela casa.
Senti-me a desmoronar por dentro. A casa onde cresci, onde aprendi a andar de bicicleta no quintal, onde o meu pai me ensinou a plantar tomates e onde, há apenas dois anos, ainda jantávamos todos juntos ao domingo. Agora, aquela casa ia ser da Andreia, a minha ex-mulher. Não por mérito dela, mas porque a minha mãe achava que os meus filhos precisavam mais dela do que eu.
— E eu? Eu não preciso de nada? — perguntei, quase num sussurro, como se tivesse vergonha de admitir que também precisava de colo, mesmo aos 35 anos.
A minha mãe suspirou e pousou a chávena na mesa. — Tu és forte, Miguel. Sempre foste. Eles são crianças. Não percebes?
Lembrei-me do dia em que a Andreia me disse que já não me amava. Foi num sábado à noite, depois de termos posto os miúdos na cama. Ela olhou para mim com uma tristeza resignada e disse: “Miguel, isto já não dá. Estou cansada de fingir.” Eu tentei lutar, tentei mudar, mas ela já tinha decidido. O divórcio foi rápido, quase indolor para ela. Para mim foi como arrancar um pedaço do peito.
Depois veio a divisão das coisas. O carro ficou para mim, os móveis para ela. Os miúdos ficaram com ela durante a semana e comigo aos fins-de-semana alternados. E agora… agora até a casa onde cresci ia ser dela.
— Mãe, tu sabes o que estás a fazer? Sabes mesmo? — perguntei, tentando controlar a voz.
Ela levantou-se devagar e pousou uma mão no meu ombro. — Sei sim, filho. Estou a fazer o que é melhor para os teus filhos.
Saí dali sem dizer mais nada. O caminho até ao meu apartamento pareceu mais longo do que nunca. Senti-me pequeno, insignificante. Como se tudo o que fiz até agora não tivesse valido de nada.
No trabalho, os colegas notaram logo que algo não estava bem. O João tentou puxar conversa à hora do almoço:
— Então pá, estás com cara de quem perdeu o Benfica e o Sporting no mesmo dia.
Sorri sem vontade. — É só cansaço.
Mas não era só cansaço. Era mágoa. Era sentir-me traído por quem mais devia proteger-me.
À noite, liguei à Andreia para saber dos miúdos.
— Estão bem, Miguel. O Diogo adormeceu no sofá a ver desenhos animados e a Matilde está cheia de tosse outra vez.
Houve um silêncio estranho do outro lado da linha.
— Olha… A tua mãe falou comigo hoje — disse ela finalmente.
— Pois… Já sei — respondi seco.
— Não penses que isto é fácil para mim — disse ela num tom mais baixo. — Eu não pedi nada disto.
— Mas também não recusaste — atirei, sentindo o veneno nas palavras.
Ela suspirou. — Os miúdos precisam de um sítio estável. Eu não consigo pagar uma renda sozinha com o ordenado que tenho na escola. E tu sabes disso.
Desliguei antes que começasse a chorar outra vez.
Os dias seguintes foram um arrastar de horas vazias. A minha mãe ligava-me todos os dias, mas eu deixava tocar até ir para o voicemail. Não queria ouvir mais justificações nem conselhos sobre como ser “forte”.
Uma noite, bati à porta da minha irmã mais velha, a Sofia. Ela abriu com aquele sorriso cansado de quem já viu demasiado da vida.
— Entra, Miguel. Já estava à espera que viesses cá desabafar.
Sentámo-nos na cozinha enquanto ela preparava chá.
— Achas justo o que a mãe fez? — perguntei-lhe, quase como uma criança perdida.
Ela encolheu os ombros. — Não sei se é justo ou não. Mas sei que ela sempre pôs os netos à frente de tudo desde que nasceram. E tu… tu tens tendência para te fechar no teu mundo quando as coisas correm mal.
— Isso não é verdade! — protestei.
Ela olhou-me nos olhos com aquela calma irritante dos irmãos mais velhos. — É sim. E sabes disso. Talvez seja altura de deixares de lutar contra tudo e todos e começares a pensar no que realmente queres para ti.
Fiquei ali sentado em silêncio, a olhar para as mãos. O cheiro do chá misturava-se com as memórias da infância: eu e a Sofia a brincar às escondidas na casa da avó; os natais em família; as discussões dos meus pais sobre dinheiro; as reconciliações à mesa do jantar.
No fim-de-semana seguinte fui buscar os miúdos como sempre fazia. Quando chegámos ao meu apartamento, o Diogo perguntou:
— Pai… Porque é que já não vamos à casa da avó?
Engoli em seco antes de responder:
— Porque agora é a casa da mãe e vossa também.
Ele olhou para mim com aqueles olhos grandes e inocentes. — Mas tu também podes lá ir?
Sorri-lhe tristemente. — Não sei, filho… Não sei.
À noite, depois de os deitar, sentei-me no sofá e deixei as lágrimas caírem finalmente. Senti-me sozinho como nunca antes na vida.
No trabalho comecei a chegar atrasado, a cometer erros parvos nos relatórios. O chefe chamou-me ao gabinete:
— Miguel, anda tudo bem contigo?
Olhei para ele e quase lhe contei tudo ali mesmo: sobre o divórcio, sobre a casa, sobre sentir-me um estranho na minha própria família. Mas limitei-me a dizer:
— São só uns problemas pessoais… Passa rápido.
Mas não passou rápido. As semanas arrastaram-se e eu sentia-me cada vez mais perdido.
Um dia recebi uma mensagem da minha mãe: “Preciso falar contigo.”
Fui ter com ela ao café da vila onde costumávamos lanchar depois da escola quando eu era miúdo.
Ela estava sentada junto à janela, com as mãos entrelaçadas sobre a mesa.
— Miguel… Sei que estás magoado comigo — começou ela sem rodeios. — Mas acredita que fiz isto por amor aos teus filhos. Não quero perder-te também.
Olhei para ela e vi pela primeira vez as rugas profundas no rosto dela, o cabelo grisalho apanhado num carrapito apressado.
— Sinto-me traído, mãe… Como se nunca tivesse sido prioridade para ti — confessei finalmente.
Ela pegou nas minhas mãos e apertou-as com força.
— Tu és meu filho e amo-te mais do que tudo neste mundo. Mas há alturas em que temos de fazer escolhas difíceis… E eu escolhi proteger os teus filhos porque são pequenos e indefesos como tu foste um dia.
Chorei ali mesmo no café, sem vergonha dos olhares curiosos à nossa volta.
Aos poucos fui aceitando que aquela casa nunca mais seria minha. Comecei a procurar um novo sentido para a vida: inscrevi-me num curso de fotografia; comecei a correr ao fim da tarde; tentei ser um pai melhor nos fins-de-semana em que tinha os miúdos comigo.
A relação com a minha mãe nunca voltou ao que era antes, mas aprendi a perdoá-la — ou pelo menos a tentar compreender as razões dela.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que algum dia conseguimos realmente perdoar quem nos magoa em nome do amor? Ou será que passamos o resto da vida à procura de um lugar onde finalmente sejamos prioridade?