Promessas Quebradas: O Preço de Um Carro e Uma Família Desfeita

— Não quero saber, Mariana. Eu prometi ao teu irmão que lhe dava o dinheiro para o carro. Agora, se tu também queres, resolvam isso entre vocês. — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, fria e definitiva, enquanto mexia o café como se estivesse a dissolver ali todas as culpas do mundo.

Fiquei parada, com as mãos trémulas sobre a mesa de madeira gasta, a olhar para o meu irmão Rui. Ele desviou o olhar, fingindo interesse nas migalhas do pão. Tinha vinte e dois anos, eu vinte e cinco. Ambos ainda a viver em casa dos pais, ambos a tentar encontrar um rumo. Mas naquele momento, percebi que algo se tinha partido entre nós.

— Mas mãe… — tentei argumentar, sentindo o nó na garganta apertar. — Eu também preciso do carro para ir trabalhar. O Rui nem sequer tem emprego fixo!

Ela não me olhou. — Já disse tudo o que tinha a dizer.

O Rui levantou-se de rompante. — Se queres metade do dinheiro, vais ter de esperar. Eu já contei com isto há meses! — atirou-me, antes de sair da cozinha e bater com a porta.

Naquele instante, senti-me sozinha como nunca. O meu pai estava calado no canto da sala, escondido atrás do jornal, como sempre fazia quando as coisas ficavam difíceis. A minha mãe continuava a mexer o café, os olhos fixos na chávena.

Os dias seguintes foram um silêncio pesado em casa. O Rui evitava-me, eu evitava-o ainda mais. A minha mãe fingia que nada se passava. O meu pai… bem, ele nunca foi de falar muito.

Passaram-se semanas até que o Rui apareceu com um carro usado, velho mas funcional. A minha mãe fez uma festa, tirou fotografias, chamou os vizinhos para verem “o orgulho do filho”. Eu fiquei no meu quarto, a ouvir as gargalhadas lá em baixo, sentindo-me cada vez mais pequena.

O tempo passou. Conheci o Miguel, casei-me, saí de casa dos meus pais. O Rui ficou lá mais uns anos, até arranjar trabalho numa oficina em Setúbal. Achei que as coisas iam melhorar com a distância, mas enganei-me.

Quando engravidei da Leonor, precisei de ajuda para comprar um carro maior. Fui falar com a minha mãe.

— Mãe, será que me podes ajudar? Agora com a bebé vai ser complicado sem carro…

Ela suspirou fundo. — Mariana, sabes que não posso estar sempre a dar dinheiro. Já ajudei o teu irmão…

— Mas ajudaste-o porque prometeste! E eu? Não sou tua filha também?

Ela encolheu os ombros. — Cada um tem as suas oportunidades.

Saí dali com lágrimas nos olhos e uma raiva surda no peito. O Miguel tentou consolar-me:

— Não te preocupes, amor. Arranjamos maneira.

Mas não era só o dinheiro. Era o princípio da coisa. Era sentir que nunca fui prioridade.

O tempo foi passando e as mágoas acumulando-se como pó nos móveis antigos da casa dos meus pais. Os jantares de família tornaram-se tensos; eu e o Rui mal trocávamos palavras. A minha mãe fingia não perceber e continuava a tratar o Rui como o menino de ouro.

No Natal passado, tudo explodiu.

Estávamos todos à mesa quando a Leonor perguntou inocentemente:

— Avó, porque é que dás sempre presentes maiores ao tio Rui?

O silêncio caiu como uma pedra. O Rui corou até às orelhas; a minha mãe tentou rir-se:

— Oh filha, não é nada disso…

Mas eu já não aguentei mais.

— Não é nada disso? Mãe, desde sempre que fazes distinção entre nós! Achas justo? Achas mesmo?

O Rui levantou-se:

— Lá estás tu com as tuas cenas! Sempre a fazer-te de vítima!

— Vítima? Rui, tu sabes bem o que se passou! Sabes que nunca foi justo!

A minha mãe gritou:

— Basta! Não quero discussões nesta casa!

A Leonor começou a chorar; o Miguel levou-a para fora da sala. O meu pai continuou calado.

Depois desse Natal, deixei de ir lá tantas vezes. Senti-me culpada por afastar a Leonor dos avós, mas não conseguia fingir que estava tudo bem.

O Rui também se afastou. Ouvi dizer que começou a beber mais do que devia; perdeu o emprego na oficina e voltou para casa dos pais.

Um dia recebi uma mensagem dele:

“Desculpa por tudo. Não sei como chegámos aqui.”

Fiquei horas a olhar para aquelas palavras. Quis responder, mas não sabia como começar.

A minha mãe ligou-me dias depois:

— Mariana, o teu irmão não anda bem… Podes vir cá falar com ele?

Fui. Encontrei-o sentado no sofá, olhar perdido na televisão desligada.

— Olá Rui…

Ele olhou para mim com olhos vermelhos.

— Desculpa Mariana… Eu só queria sentir que era importante para alguém.

Sentei-me ao lado dele e chorei também.

A nossa mãe entrou na sala e ficou parada à porta.

— Eu só queria o melhor para vocês… — murmurou ela.

Olhei para ela e vi uma mulher cansada, cheia de arrependimentos que nunca confessaria em voz alta.

Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena tudo isto? Será que uma promessa mal feita pode mesmo destruir uma família? Ou será que ainda vamos a tempo de nos perdoarmos uns aos outros?

E vocês? Já sentiram que uma decisão aparentemente pequena mudou tudo na vossa família?