Troquei a sogra pela minha mãe – como finalmente escolhi a mim mesma
— Não é assim que se faz, Mariana! — a voz da minha sogra, Dona Lurdes, cortou o ar como uma faca. Eu estava a servir o arroz, tremendo, tentando não deixar cair nada. O olhar dela, sempre crítico, pousava em cada gesto meu. — Na minha casa, as coisas têm ordem. E tu, se queres ser uma boa esposa para o Rui, tens de aprender.
O Rui, sentado ao meu lado, fingia não ouvir. Olhava para o prato, mastigando devagar, como se a comida fosse mais interessante do que a guerra fria que se desenrolava à mesa. O meu coração batia descompassado. Senti as lágrimas a quererem saltar, mas engoli-as com o arroz mal cozido.
Desde que casei com o Rui, há três anos, parecia que tinha trocado a minha vida por um papel secundário numa novela que não era minha. A minha mãe, Dona Rosa, sempre me dizia: “Filha, não te apagues por ninguém.” Mas eu apaguei. Apaguei-me para agradar ao Rui, para agradar à Dona Lurdes, para ser a nora perfeita que nunca seria suficiente.
Naquela noite, depois de mais uma discussão sobre como eu devia dobrar os lençóis ou temperar o feijão, fechei-me na casa de banho. Olhei-me ao espelho e quase não me reconheci. O cabelo apanhado à pressa, as olheiras fundas, a boca sem cor. Onde estava a Mariana que sonhava em ser professora, que ria alto, que dançava nas festas da aldeia?
O Rui bateu à porta.
— Mariana, anda lá para a sala. A minha mãe está à tua espera.
Respirei fundo. — Rui, tu nunca me defendes. Nunca dizes nada.
Ele encolheu os ombros. — É a minha mãe. Não quero problemas.
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. E se eu desaparecesse? Será que alguém notava? Ou só dariam pela falta do jantar feito e da roupa passada?
Na manhã seguinte, acordei antes de todos. Fiz as malas em silêncio. Cada peça de roupa era um pedaço da minha coragem a voltar. Escrevi um bilhete: “Preciso de tempo para mim. Estou em casa da minha mãe.”
Cheguei à casa da Dona Rosa com o coração apertado. Ela abriu a porta e abraçou-me sem perguntar nada. Só depois de um chá quente e de muitas lágrimas é que consegui contar tudo.
— Filha, tu não és menos por não seres o que eles querem. — Ela segurou-me as mãos. — Tens de escolher por ti.
Os dias seguintes foram um misto de alívio e culpa. O Rui ligava-me todos os dias. — Mariana, volta para casa. A minha mãe está a sofrer. Eu também.
Mas eu não conseguia. Pela primeira vez em anos, sentia o silêncio da casa da minha mãe como um abraço. Voltei a ler os meus livros, a ouvir música alta, a cozinhar como gostava. Dona Rosa ria-se das minhas invenções na cozinha, mesmo quando queimava o arroz.
As vizinhas começaram a comentar. “A Mariana voltou. O que terá acontecido?” No café, ouvi sussurros. “Deixou o marido? Que vergonha.”
Uma tarde, Dona Lurdes apareceu à porta da minha mãe. Entrou sem pedir licença, como sempre.
— Mariana, isto não é vida. O Rui precisa de ti. Eu também. Não podes abandonar a tua família assim.
Olhei para ela, tentando encontrar algum traço de ternura. — Dona Lurdes, eu também sou família. Mas ninguém me pergunta do que eu preciso.
Ela bufou, ajeitando a mala. — As mulheres da minha geração aguentavam tudo. Não era assim que se fazia?
A minha mãe interveio, calma mas firme. — Lurdes, os tempos mudaram. A Mariana tem direito à sua felicidade.
A sogra levantou-se, ofendida. — Pois, agora é tudo direitos. Antigamente era deveres.
Quando ela saiu, senti-me mais leve. Pela primeira vez, alguém me tinha defendido. A minha mãe.
O Rui continuava a ligar, cada vez mais desesperado. — Mariana, eu amo-te. Mas não sei viver entre ti e a minha mãe.
— Então escolhe, Rui. Porque eu já escolhi.
Ele ficou em silêncio. E eu percebi que, durante anos, tinha esperado que ele me salvasse. Mas era eu que tinha de me salvar.
Comecei a dar explicações a crianças da vizinhança. Aos poucos, recuperei a confiança. A minha mãe ajudava-me em tudo. À noite, conversávamos até tarde, como quando eu era adolescente.
Um dia, o Rui apareceu à porta. Trazia flores e um olhar cansado.
— Mariana, perdoa-me. Eu devia ter-te defendido. Mas não sei viver sem ti.
— Rui, eu também te amo. Mas não posso voltar a ser quem era. Ou mudamos juntos, ou cada um segue o seu caminho.
Ele chorou. Eu também. Mas não voltámos.
Os meses passaram. A dor foi dando lugar à esperança. Voltei a estudar, inscrevi-me num curso de formação. Fiz novas amigas. A minha mãe dizia: “Agora sim, vejo-te feliz.”
Às vezes, ainda sinto falta do Rui. Mas não sinto falta de me perder para agradar aos outros.
Hoje, olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas às expectativas dos outros? Quantas têm coragem de escolher por si? E vocês, já tiveram de escolher entre agradar aos outros e serem fiéis a vocês mesmas?