“Mãe, não aguento mais. Desculpa, mas preciso tirar-te as chaves de nossa casa” – Quando fiquei do lado da minha mulher contra a minha própria mãe

— Mãe, por favor, não voltes a mexer nas coisas da Sofia. Já falámos sobre isto tantas vezes… — A minha voz tremia, mas tentei manter-me firme. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o perfume intenso da minha mãe, que pairava pela sala como se fosse dela. Sofia estava na cozinha, a tentar não chorar, mas eu sentia o peso do olhar dela nas minhas costas.

A minha mãe pousou a chávena na mesa com força. — Eu só estava a arrumar! Esta casa está sempre uma confusão desde que casaste com ela. Não percebo como consegues viver assim…

O silêncio caiu pesado. O relógio da parede marcava 19h12. Era sexta-feira, e eu tinha chegado do trabalho há menos de meia hora. Mais uma vez, encontrava a minha mãe em nossa casa sem avisar, a criticar tudo e todos, como se ainda fosse o meu quarto de solteiro em Almada e não o apartamento que eu e a Sofia comprámos juntos em Odivelas.

Lembro-me de quando era pequeno e a minha mãe me protegia de tudo: dos colegas que me gozavam por ser magricela, dos professores exigentes, até do meu próprio pai quando ele levantava a voz. Cresci a acreditar que devia tudo à minha mãe. Mas agora… agora era diferente.

Sofia apareceu à porta da cozinha, os olhos vermelhos. — Dona Teresa, por favor, respeite o nosso espaço. Já lhe pedi tantas vezes…

A minha mãe virou-se para ela, com aquele ar altivo que sempre usava quando se sentia ameaçada. — O nosso espaço? Este apartamento só existe porque eu ajudei com o empréstimo! Não te esqueças disso.

Senti o sangue ferver-me nas veias. Era sempre esta chantagem emocional. A ajuda financeira que nunca me deixou esquecer.

— Mãe, chega! — A minha voz saiu mais alta do que queria. — Não tens o direito de entrar aqui quando te apetece e mexer nas nossas coisas. Isto é a nossa casa agora.

Ela olhou para mim como se eu tivesse acabado de lhe dar uma facada nas costas. — Então é assim? Ficas do lado dela contra mim?

O silêncio voltou, desta vez mais pesado ainda. Sofia agarrou-me na mão, tremia ligeiramente. Eu sabia que ela já não aguentava mais aquela situação. Quantas discussões já tínhamos tido por causa disto? Quantas noites em que ela chorava baixinho na casa de banho para eu não ouvir?

A verdade é que nunca tive coragem de enfrentar a minha mãe verdadeiramente. Sempre arranjei desculpas: “Ela só quer ajudar”, “É só o feitio dela”, “Vai passar”. Mas não passou. Só piorou.

Naquela noite, depois de a minha mãe sair — batendo com a porta e dizendo que eu era um ingrato — sentei-me no sofá com Sofia ao meu lado. Ela encostou-se ao meu ombro e sussurrou:

— Não aguento mais, Miguel. Ou resolves isto ou… não sei se consigo continuar.

O medo apoderou-se de mim. Perder a Sofia? A mulher com quem sonhei construir uma família? Mas também… magoar a minha mãe? Como é que se escolhe entre as duas pessoas mais importantes da nossa vida?

Passei a noite em claro, a ouvir os carros na rua e os meus próprios pensamentos aos gritos dentro da cabeça. Lembrei-me do dia em que pedi Sofia em casamento no miradouro de Santa Catarina — ela disse logo que sim, os olhos brilhavam de felicidade. E lembrei-me do olhar desconfiado da minha mãe nesse mesmo dia: “Tens a certeza? Ela não é como nós…”

A verdade é que Sofia vinha de uma família diferente: pais divorciados, cresceu com poucos recursos, mas sempre com uma dignidade enorme. Trabalhadora, honesta, lutadora. Tudo o que eu admirava nela era exatamente o que a minha mãe criticava: “Não tem maneiras”, “Não sabe receber”, “Não sabe cuidar de ti”.

Os meses seguintes foram um inferno silencioso. A minha mãe aparecia cada vez mais vezes sem avisar — às vezes até quando eu não estava em casa — e dava ordens à empregada, mudava móveis de sítio, criticava as compras do supermercado.

Sofia começou a evitar estar em casa sozinha. Ia trabalhar mais cedo, voltava mais tarde. Eu via-a definhar aos poucos.

Uma noite, depois de mais uma discussão — desta vez porque a minha mãe tinha deitado fora um vestido da Sofia por achar “pouco decente” — sentei-me na cama e chorei como um miúdo. Senti-me fraco, cobarde.

No dia seguinte, liguei à minha irmã Mariana.

— Preciso falar contigo.

Encontrámo-nos num café perto do trabalho dela no Saldanha. Mariana sempre foi mais distante da nossa mãe; saiu de casa cedo, foi viver para o Porto com o namorado e raramente vinha cá abaixo.

— Miguel, tu tens de pôr limites à mãe — disse ela sem rodeios enquanto mexia no café.

— Mas como? Ela ajudou-nos tanto…

— E vai continuar a usar isso contra ti para sempre se tu deixares. A tua vida é tua agora.

As palavras dela ficaram-me na cabeça durante dias.

Finalmente, numa sexta-feira à tarde, tomei coragem. Esperei que Sofia chegasse do trabalho e sentei-a no sofá.

— Amor… preciso falar contigo.

Ela olhou para mim com medo nos olhos.

— Vou falar com a minha mãe hoje. Vou pedir-lhe as chaves do apartamento.

Ela desatou a chorar — desta vez de alívio.

Quando a minha mãe chegou no sábado para “trazer uns bolinhos”, sentei-me com ela à mesa da cozinha.

— Mãe… preciso pedir-te uma coisa importante.

Ela olhou para mim desconfiada.

— Preciso que me devolvas as chaves do nosso apartamento.

O silêncio foi ensurdecedor. Ela ficou branca como a cal.

— Estás a expulsar-me da tua vida?

— Não, mãe… Mas preciso que respeites o nosso espaço. Eu amo-te muito, mas agora tenho uma família para proteger também.

Ela levantou-se devagar, tirou as chaves da mala e pousou-as na mesa com mãos trémulas.

— Nunca pensei ouvir isto de ti…

Saiu sem olhar para trás.

Fiquei ali sentado muito tempo depois dela sair. Sofia veio abraçar-me em silêncio.

Os dias seguintes foram estranhos: um vazio enorme misturado com alívio. A minha mãe deixou de ligar durante uma semana inteira — coisa inédita desde que saí de casa aos 28 anos.

Depois ligou finalmente:

— Miguel… desculpa ter exagerado. Preciso de tempo para aceitar isto.

Chorei ao telefone como nunca tinha chorado antes.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível ser bom filho e bom marido ao mesmo tempo? Ou há momentos em que temos mesmo de escolher? E vocês… já passaram por algo assim?