O Dia em que Levei a Minha Mãe ao Lar: O Olhar Dela Ficou Gravado em Mim
— Não me deixes aqui, filha. — A voz da minha mãe era um sussurro, mas cada palavra parecia um grito dentro do carro parado à porta do Lar Santa Clara. O rádio ainda tocava baixinho uma música qualquer da Amália, mas tudo o que eu ouvia era o som do meu próprio coração a bater descompassado.
Olhei para ela, as mãos magras a tremerem no colo, os olhos húmidos fixos em mim. Tentei sorrir, mas o sorriso morreu-me nos lábios. — Mãe, sabes que não tenho outra hipótese. Eu… — engoli em seco, sentindo a garganta apertada. — Eu não consigo cuidar de ti sozinha. O trabalho, os miúdos…
Ela virou o rosto para a janela, olhando para o portão de ferro do lar. — Quando eras pequena, eu também estava cansada. Mas nunca te deixei.
Aquelas palavras caíram como pedras. Lembrei-me das noites em que ela me embalava, mesmo depois de um dia inteiro a trabalhar na fábrica de conservas. Lembrei-me dos serões em que me fazia chá de limão quando eu tinha febre, das histórias inventadas para me adormecer. E agora era eu quem a deixava ali, entre estranhos.
O silêncio instalou-se entre nós enquanto eu tentava encontrar coragem para sair do carro. Lá fora, uma auxiliar sorria-nos com simpatia forçada. — Dona Maria, está pronta? — perguntou, abrindo a porta do lado dela.
A minha mãe hesitou antes de sair. Os passos eram lentos, arrastados. Eu segui atrás, sentindo todos os olhares dos outros residentes e funcionários cravados em nós. O cheiro a desinfetante misturava-se com o aroma doce das flores no jardim.
No corredor principal, cruzámo-nos com o senhor António, sentado numa cadeira de rodas, a olhar para o vazio. A minha mãe apertou-me a mão com força. — Não me deixes aqui sozinha, por favor.
— Eu venho visitar-te todas as semanas, prometo — disse eu, sabendo que talvez nem sempre conseguisse cumprir.
A diretora do lar apareceu, toda sorridente e eficiente. — Filipa, não se preocupe. A sua mãe vai ser muito bem tratada aqui. Temos atividades todos os dias, fisioterapia, até aulas de pintura!
A minha mãe olhou para mim como quem pede salvação. — Eu não quero pintar. Quero ir para casa.
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas forcei-me a manter a compostura. — Mãe…
Ela interrompeu-me com um gesto brusco. — Vai-te embora antes que eu me zangue contigo.
Fiquei ali parada uns segundos, sem saber o que fazer. Depois virei costas e saí apressada pelo corredor fora, sentindo o peso do olhar dela nas minhas costas.
No carro, chorei como há muito não chorava. Lembrei-me de quando era adolescente e só queria sair de casa, fugir daquela aldeia pequena onde todos sabiam tudo de todos. Lembrei-me das discussões com o meu pai sobre a universidade em Lisboa, das noites em que a minha mãe ficava acordada à espera que eu chegasse dos bares com os amigos.
— Filipa, tu não percebes… nós só queremos o melhor para ti — dizia ela sempre que discutíamos.
— O melhor para mim é sair daqui! — gritava eu, sem pensar nas feridas que deixava.
Os anos passaram depressa demais. Casei-me com o Rui, tive dois filhos e uma carreira exigente num escritório de advogados no Porto. As visitas à aldeia tornaram-se cada vez mais raras. O meu pai morreu subitamente de um AVC e foi a minha mãe quem ficou sozinha na casa grande e fria.
— Não queres vir viver connosco? — perguntei-lhe uma vez.
— Não quero ser um peso para ninguém — respondeu ela.
Agora era eu quem sentia o peso da culpa a esmagar-me o peito.
As semanas seguintes foram um tormento. Cada vez que ligava ao lar, diziam-me que a minha mãe estava calada, pouco comunicativa. — Não quer participar nas atividades — informava-me a diretora com um sorriso amarelo.
Quando ia visitá-la aos domingos, encontrava-a sentada junto à janela do quarto pequeno e impessoal, a olhar para o jardim lá fora.
— Estás bem? — perguntava-lhe sempre.
Ela encolhia os ombros. — Estou viva.
Tentava animá-la com histórias dos netos, mostrava-lhe fotografias no telemóvel. Ela sorria pouco e falava menos ainda.
Uma tarde levei-lhe um bolo de laranja feito por mim e ela chorou ao primeiro bocado. — Sabe à nossa casa…
A culpa corroía-me por dentro. Comecei a discutir cada vez mais com o Rui. Ele dizia que eu estava obcecada com a minha mãe e que estava a negligenciar os miúdos.
— Não vês que estás a perder-te nisto? A tua mãe está bem cuidada! — gritava ele numa noite em que cheguei tarde do lar.
— Não está! Ela está sozinha! — respondi-lhe entre lágrimas.
— E nós? Também estamos sozinhos sem ti!
Senti-me dividida entre dois mundos: o da família que construí e o da família que me criou.
Um dia cheguei ao lar e encontrei a minha mãe caída no chão do quarto. Tinha tentado levantar-se sozinha para ir à casa de banho e tropeçou no tapete.
— Não quero incomodar ninguém — murmurou ela enquanto esperávamos pela enfermeira.
Nesse momento percebi que ela já não era só minha mãe; era uma mulher envelhecida e frágil, cheia de medos e saudades.
Na viagem de regresso a casa pensei em tudo o que tínhamos vivido juntas: as festas populares na aldeia, as tardes de verão no quintal, as zangas e as reconciliações silenciosas.
Perguntei-me se teria feito mesmo tudo o que podia por ela ou se apenas escolhi o caminho mais fácil para mim.
Agora olho para trás e vejo tantos momentos perdidos por orgulho ou pressa. Será que algum dia vou conseguir perdoar-me? E vocês… já sentiram esta culpa silenciosa quando tomam decisões difíceis pelos vossos pais?