A Minha Própria Irmã Quer o Meu Lar – E a Minha Mãe Apoia-a!
— Não percebes, Mariana? Ela precisa mais do que tu! — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer. Eu estava sentada à mesa, as mãos trémulas a apertar a chávena, enquanto a minha irmã Inês me olhava com aquele ar de vítima que sempre soube usar tão bem.
— Precisa mais do que eu? — repeti, sentindo o nó na garganta apertar. — Mãe, este apartamento foi o resultado de anos de trabalho. De noites sem dormir, de empregos miseráveis, de sonhos adiados. Como podes pedir-me isto?
A Inês baixou os olhos, mas não disse nada. Era sempre assim: eu era a má da fita, a egoísta, a que não sabia partilhar. Desde pequenas que a nossa mãe fazia questão de me lembrar que a Inês era mais frágil, mais sensível, mais merecedora de compreensão. Eu era a forte, a responsável, aquela em quem se podia confiar para resolver tudo.
Mas agora era diferente. Agora era o meu lar.
Lembro-me do dia em que assinei o contrato do apartamento em Benfica. Chorei no elevador, sozinha, com as chaves na mão. Senti-me finalmente adulta, finalmente dona do meu destino. E agora… agora queriam tirar-me isso.
— Mariana, tu tens um bom emprego — insistiu a minha mãe, como se isso resolvesse tudo. — A Inês está desempregada, o Miguel deixou-a com as crianças e ela não tem para onde ir. Tu podias arranjar outro sítio para viver.
— E porque é que sou sempre eu a sacrificar-me? — explodi, surpreendendo-me com o tom da minha própria voz. — Porque é que nunca é a Inês?
O silêncio caiu pesado sobre nós. A minha mãe olhou-me como se eu tivesse dito uma blasfémia. A Inês começou a chorar baixinho.
— Eu só queria um pouco de paz — murmurou ela. — Não te quero tirar nada, Mariana. Só preciso de ajuda.
Ajuda. Sempre ajuda. Sempre eu.
Levantei-me da mesa e fui até à janela. Lá fora, Lisboa parecia indiferente ao meu drama: carros apressados, vizinhos a passear os cães, o sol a bater nos telhados vermelhos. Senti-me pequena, esmagada por uma culpa antiga que nunca me largava.
Lembrei-me dos Natais em que a Inês fazia birra porque não tinha o presente que queria e eu acabava por lhe dar o meu. Das vezes em que fiquei em casa para tomar conta dela enquanto os meus amigos iam à praia. Dos castigos que levei por coisas que ela fez.
— Mariana… — ouvi a voz da minha mãe atrás de mim, mais suave agora. — Eu sei que não é justo. Mas és tu quem pode aguentar isto.
Virei-me devagar.
— E quem é que me aguenta a mim? — perguntei, quase num sussurro.
A minha mãe não respondeu. A Inês continuava a chorar.
Naquela noite não dormi. Fiquei deitada na cama, a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha feito para chegar ali. Lembrei-me do meu primeiro emprego numa loja do Colombo, das horas extra no call center, das noites passadas a estudar para conseguir uma promoção. Lembrei-me do orgulho no olhar do meu pai quando lhe mostrei o apartamento pela primeira vez — antes dele morrer tão cedo e nos deixar sozinhas com uma mãe cada vez mais amarga e uma irmã cada vez mais dependente.
No dia seguinte fui trabalhar como um autómato. Os colegas perguntaram se estava tudo bem e eu sorri como sempre faço: “Está tudo ótimo!” Ninguém percebeu nada.
À hora de almoço recebi uma mensagem da Inês: “Desculpa por ontem. Não quero ser um peso para ti.” Senti raiva e pena ao mesmo tempo. Queria abraçá-la e afastá-la para sempre.
Quando cheguei a casa nesse dia, encontrei a minha mãe sentada no sofá do meu apartamento. Tinha uma chave extra desde o início — “para emergências”, dizia ela.
— Mariana, precisamos conversar — começou ela sem rodeios.
Sentei-me à sua frente, exausta.
— A tua irmã está desesperada — disse ela. — Eu sei que tens razão em estares zangada. Mas pensa: se fosses tu no lugar dela?
Fiquei calada. Não conseguia imaginar-me no lugar da Inês porque nunca ninguém me deixou cair tão fundo.
— Não posso dar-lhe o meu apartamento — disse finalmente. — Posso ajudá-la de outras formas, mas este é o meu lar.
A minha mãe suspirou e abanou a cabeça.
— Sempre foste egoísta, Mariana.
Aquela palavra ficou a ecoar na minha cabeça durante dias: egoísta. Eu? Depois de tudo?
As semanas passaram e a tensão aumentou. A Inês mudou-se para casa da nossa mãe com os miúdos e eu comecei a sentir-me culpada cada vez que via as fotos deles no WhatsApp: três crianças pequenas num T2 minúsculo em Odivelas, brinquedos espalhados pelo chão, olheiras fundas no rosto da minha irmã.
No trabalho comecei a falhar prazos. O meu chefe chamou-me ao gabinete:
— Está tudo bem contigo? Precisas de uns dias?
Quase chorei ali mesmo, mas disse que estava tudo sob controlo.
Uma noite recebi uma chamada da Inês:
— Mariana… desculpa ligar-te tão tarde… mas podes ficar com os miúdos amanhã? Tenho uma entrevista de emprego…
Claro que disse que sim.
No dia seguinte levei os meus sobrinhos ao parque perto de casa. O mais novo caiu e magoou-se no joelho; sentei-o no colo e ele chorou baixinho até adormecer encostado ao meu peito. Olhei para eles e pensei: será isto amor ou apenas obrigação?
Quando a Inês veio buscá-los estava exausta mas agradecida:
— Obrigada… não sei o que faria sem ti.
Nesse momento percebi que talvez nunca fosse possível separar amor de sacrifício na nossa família.
No domingo seguinte houve jantar em casa da nossa mãe. O ambiente estava tenso; ninguém falava muito. No fim da refeição, a minha mãe levantou-se e disse:
— Quero pedir desculpa à Mariana. Fui injusta contigo.
Fiquei sem saber o que dizer.
A Inês olhou para mim com lágrimas nos olhos:
— Não te vou pedir mais nada, prometo. Só quero que sejas feliz…
Saí daquela casa com um peso enorme no peito e uma pergunta na cabeça: será possível sermos felizes sem magoar quem amamos? Ou será que estamos todos condenados a repetir os mesmos sacrifícios geração após geração?
E vocês? Já sentiram que têm de escolher entre vocês próprios e a vossa família? Como é que se encontra esse equilíbrio?