Entre a Culpa e o Amor: O Dia em que Deixei a Minha Mãe no Lar
— Não me deixes aqui, filho. Por favor, leva-me para casa.
As palavras da minha mãe ecoam na minha cabeça desde aquele dia. O cheiro do corredor do lar de idosos ainda me persegue — uma mistura de desinfetante e saudade. Senti as mãos dela, frágeis, agarrarem-se às minhas com uma força que já não julgava possível. Olhei para a enfermeira, Dona Teresa, que me devolveu um olhar compreensivo mas cansado, como quem já viu demasiadas despedidas como aquela.
— Mãe, eu… — a voz falhou-me. — Eu não consigo sozinho. Tu sabes que eu tentei…
Ela virou o rosto para a janela, os olhos perdidos no jardim onde algumas senhoras jogavam cartas. O silêncio entre nós era pesado, cortado apenas pelo tique-taque do relógio na parede. Senti-me pequeno, incapaz, um filho que falhou à promessa de nunca a abandonar.
A verdade é que tudo começou há dois anos, quando o Alzheimer começou a roubar-lhe pedaços de memória. Primeiro esqueceu-se do nome da vizinha, depois do aniversário da neta, Inês. Um dia, saiu de casa e perdeu-se no bairro. Foram horas de pânico até a encontrarmos sentada num banco de jardim, a olhar para o vazio.
O meu irmão, António, vive em Braga e só vinha a Lisboa uma vez por mês. Sempre que ligava, dizia:
— Tens de ser forte, Miguel. A mãe precisa de ti.
Mas onde estava ele quando eu passava noites em claro porque ela acordava a meio da noite a gritar pelo meu pai? Onde estava ele quando tive de esconder as chaves do fogão porque ela quase incendiou a cozinha?
A minha mulher, Sofia, tentava ajudar, mas o nosso casamento começou a sofrer. As discussões tornaram-se rotina.
— Não podemos continuar assim, Miguel! A Inês sente-se ignorada, eu sinto-me sozinha…
Eu sabia que ela tinha razão. Mas como podia escolher entre a mulher que me deu a vida e a família que construí? Sentia-me dividido ao meio.
O médico foi claro:
— Miguel, a sua mãe precisa de cuidados especializados. Não é seguro mantê-la em casa.
Passei noites em claro a pesquisar lares. Visitei cinco antes de escolher o Lar Santa Clara. Era limpo, com jardim e funcionários simpáticos. Mas nada disso importava à minha mãe.
No dia em que a levei para lá, ela chorou como nunca a tinha visto chorar. E eu chorei com ela, mas tentei esconder as lágrimas quando os outros residentes olharam para nós.
Durante semanas, evitei visitar. Sentia vergonha de mim próprio. A Sofia tentava animar-me:
— Fizeste o melhor que podias. Ela está segura agora.
Mas cada vez que atendia o telefone e ouvia a voz da minha mãe — “Quando vens buscar-me?” — sentia uma punhalada no peito.
O António ligou-me finalmente:
— Ouvi dizer que puseste a mãe num lar. Não achas que devíamos ter decidido juntos?
Fiquei furioso.
— Decidido juntos? Tu nem cá estavas! Fui eu que aguentei tudo sozinho!
Discutimos durante minutos. No fim, desliguei-lhe o telefone na cara. Mais uma relação destruída pela doença da minha mãe.
A Inês começou a perguntar:
— O avó vai voltar para casa?
E eu não sabia o que responder. Sentia-me um traidor aos olhos da minha filha.
As visitas ao lar tornaram-se rituais dolorosos. A minha mãe ora me reconhecia, ora me confundia com o meu pai ou com um primo distante. Um dia, encontrei-a sentada sozinha no jardim, a falar com uma pomba.
— Sabes, Miguel — disse-me Dona Teresa — muitos filhos sentem culpa. Mas às vezes amar é saber deixar ir.
Mas como se deixa ir quem nos ensinou tudo? Como se aceita que já não somos capazes?
Numa tarde chuvosa, sentei-me ao lado dela e tentei explicar:
— Mãe… eu amo-te muito. Quis cuidar de ti até ao fim…
Ela olhou para mim com uma lucidez rara:
— Eu sei, filho. Não chores mais por mim.
Chorei na mesma. Chorei por tudo o que perdi: a mãe forte que fazia arroz doce aos domingos, as conversas à janela sobre os vizinhos, os natais em família antes de o meu pai morrer.
Hoje venho visitá-la todas as semanas. Trago-lhe flores e fotografias antigas. Às vezes sorrimos juntos; outras vezes ela não sabe quem sou.
A culpa ainda me acompanha como uma sombra. Pergunto-me se fiz mesmo o melhor para ela ou se fui simplesmente cobarde. O António já não fala comigo; a Sofia tenta reconstruir o nosso casamento; a Inês desenha corações para a avó e pergunta porque é que as pessoas envelhecem.
Será que algum dia vou perdoar-me? Ou será esta culpa o preço do amor?
E vocês — já passaram por isto? Como se aprende a viver com decisões impossíveis?