No dia em que deixei a minha mãe no lar: O olhar que me rasgou a alma

— Vais mesmo deixar-me aqui, Miguel? — A voz da minha mãe tremeu, quase num sussurro, enquanto olhava para mim com aqueles olhos que sempre me intimidaram em criança. O corredor do lar cheirava a desinfetante e a saudade, e eu sentia o suor frio escorrer-me pelas costas.

Tentei não vacilar. — Mãe, é só por uns tempos. O médico disse que aqui vais estar melhor acompanhada… — As palavras saíram-me secas, como se não fossem minhas. Mas eram. E cada sílaba parecia uma facada.

Ela apertou-me a mão com uma força surpreendente para alguém tão frágil. — Não digas isso. Eu sei que não volto mais para casa. — E ali, naquele instante, percebi que ela sabia tudo. Sabia do cansaço que me consumia, das discussões com a minha mulher, dos meus filhos que já quase não a conheciam. Sabia do silêncio pesado que pairava entre nós há anos.

Lembro-me de quando era pequeno e ela me levava ao Jardim da Estrela aos domingos. O cheiro das castanhas assadas, o som dos risos das outras crianças. Mas depois veio o divórcio dos meus pais, as noites em que ela chorava baixinho na cozinha, pensando que eu não ouvia. Cresci a sentir-me responsável pela tristeza dela, mas também revoltado por nunca ter tido uma mãe como as outras.

— Miguel, prometes que vens visitar-me? — A voz dela era agora apenas um fio.

— Prometo, mãe. — Menti. Ou talvez quisesse acreditar que era verdade.

A diretora do lar apareceu, sorridente mas apressada. — Dona Rosa, venha comigo ver o seu quarto. Miguel, pode esperar aqui um bocadinho? — E assim fiquei sozinho no corredor, rodeado de fotografias antigas nas paredes e do som distante de uma televisão ligada noutra sala.

O meu telemóvel vibrou: uma mensagem da Ana. “Já despachaste isso? O Tomás tem treino às seis.” Senti raiva. Dela, de mim, da vida. Como se tudo fosse uma tarefa para riscar numa lista interminável.

Quando a minha mãe voltou, trazia os olhos vermelhos mas o rosto sereno. — O quarto é bonito. Tem vista para o jardim. — Tentou sorrir, mas falhou.

— Mãe… — Quis pedir desculpa por tudo: pelas vezes que lhe gritei, pelas vezes que não atendi o telefone porque estava cansado demais para ouvir as suas lamúrias. Mas as palavras ficaram presas na garganta.

Ela pousou a mão no meu braço. — Vai lá, Miguel. Não quero que chegues atrasado ao treino do Tomás.

Saí dali como um ladrão na noite. No carro, chorei como há muito não chorava. Lembrei-me da última discussão com a Ana:

— Não aguento mais! A tua mãe liga-te todos os dias, quer vir cá jantar todas as semanas! Isto não é vida! — gritara ela.

— É a minha mãe! Está sozinha! — respondi eu, mas já sem convicção.

— E nós? Também estamos sozinhos nesta casa! — E bateu com a porta do quarto.

O Tomás e a Leonor cresceram a ouvir discussões sobre avós e sogras, sobre quem devia ceder mais. Nunca lhes consegui explicar porque é que a avó Rosa era tão amarga às vezes, porque é que eu próprio me tornava frio quando falava dela.

No trabalho, os colegas falavam dos pais como se fossem heróis ou fardos inevitáveis. O João perdeu o pai há dois anos e ainda chora à sexta-feira à tarde; a Marta cuida da mãe doente em casa e diz que é um privilégio. Eu sentia-me um impostor: nem herói nem mártir, apenas um filho cansado.

Naquela noite, sentei-me à mesa com a Ana e os miúdos. O silêncio era pesado. A Leonor perguntou:

— O pai vai buscar a avó ao lar amanhã?

Olhei para Ana à procura de apoio, mas ela desviou o olhar.

— Não sei, filha. Vamos ver como corre esta semana.

A Leonor baixou os olhos para o prato e empurrou as ervilhas com o garfo.

Os dias passaram devagar. No início, ligava à minha mãe todos os dias. Ela falava-me do jardim, das outras senhoras do lar, das enfermeiras simpáticas. Mas havia sempre um vazio nas entrelinhas.

Um sábado à tarde decidi visitá-la sem avisar. Encontrei-a sentada no jardim, sozinha, a olhar para as árvores despidas pelo outono.

— Olá, mãe.

Ela sorriu ao ver-me, mas os olhos estavam tristes.

— Pensei que já não vinhas mais.

Sentei-me ao lado dela no banco de madeira. Ficámos em silêncio durante minutos longos demais.

— Sabes, Miguel… Quando eras pequeno eu achava que ia conseguir dar-te tudo o que precisavas. Mas depois perdi-me pelo caminho. — A voz dela era baixa, quase um segredo.

— Não digas isso…

— É verdade. E tu também te perdeste de mim. — Olhou-me nos olhos pela primeira vez em anos. — Mas ainda vamos a tempo de nos encontrar?

Não soube responder-lhe. Senti vergonha por todas as vezes que preferi o conforto da rotina ao desconforto do afeto.

Nesse dia voltei para casa mais leve e mais pesado ao mesmo tempo. Comecei a visitar a minha mãe todos os domingos. Às vezes levava os miúdos; outras vezes íamos só os dois dar uma volta pelo jardim do lar.

Com o tempo percebi que o amor não se mede pelas visitas ou pelas palavras certas ditas nos momentos certos. Mede-se pela coragem de enfrentar o desconforto, de pedir desculpa mesmo quando já parece tarde demais.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se tivéssemos falado mais cedo? Se tivéssemos chorado juntos em vez de cada um no seu canto?

E vocês? Já sentiram esse peso no peito por uma decisão difícil? Como se repara um coração partido entre mãe e filho?