“Tens um mês para sair de casa”: O dia em que a minha mãe nos expulsou
— Tens um mês para sair de casa. Preciso de estar sozinha. — A voz da minha mãe, Bárbara, ecoou pela sala como um trovão inesperado numa tarde abafada de julho. Eu estava sentada no sofá, com a minha irmã Mariana ao lado, ambas com as mãos suadas e os olhos arregalados. O relógio da parede marcava 19h12, mas o tempo parecia ter parado naquele instante.
— Mãe, estás a falar a sério? — perguntei, tentando controlar o tremor na voz.
Ela não desviou o olhar. Os seus olhos castanhos, normalmente doces, estavam frios como pedra. — Estou. Preciso do meu espaço. Já são adultas, está na hora de seguirem o vosso caminho.
Mariana começou a chorar baixinho. Eu senti uma raiva surda a crescer dentro de mim, misturada com medo e incredulidade. Como é que a nossa mãe, que sempre nos protegeu dos pesadelos da infância, agora nos empurrava para fora do ninho sem aviso?
A verdade é que as coisas já não estavam bem há muito tempo. Desde que o meu pai saiu de casa — ou melhor, desde que a minha mãe o pôs fora por causa das suas traições — que tudo ficou diferente. A casa tornou-se mais silenciosa, os jantares mais curtos, as conversas mais frias. Mas nunca pensei que ela fosse capaz disto.
— E onde é que queres que fiquemos? — insisti, sentindo-me uma criança outra vez.
— Isso agora é convosco. Já têm idade para se desenrascarem. — Ela levantou-se e foi para o quarto, fechando a porta com força.
Ficámos ali sentadas em silêncio. Mariana soluçava e eu sentia-me perdida. Tinha 22 anos, estava no último ano da faculdade de Psicologia em Lisboa, mas ainda não tinha emprego fixo. Mariana tinha 19 e trabalhava num café a recibos verdes. Não tínhamos poupanças nem família próxima em quem confiar.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto, onde ainda estavam coladas as estrelas fosforescentes da infância. Lembrei-me das noites em que a mãe se sentava ao meu lado para me acalmar dos pesadelos, das manhãs em que nos fazia panquecas ao domingo. Onde é que essa mãe tinha ido parar?
No dia seguinte, tentei falar com ela antes de sair para as aulas.
— Mãe, podemos conversar? — perguntei à porta da cozinha.
Ela nem me olhou. — Não há nada para conversar. Já está decidido.
Senti um nó na garganta. Saí de casa com os olhos vermelhos e o coração apertado.
Durante as semanas seguintes, tentei encontrar uma solução. Procurei quartos para arrendar em Lisboa, mas os preços eram impossíveis para quem só tinha um part-time e uma irmã dependente. Falei com colegas da faculdade, mas ninguém tinha espaço ou condições para nos acolher.
Mariana ficou cada vez mais ansiosa. Começou a faltar ao trabalho e a fechar-se no quarto. Uma noite, ouvi-a chorar baixinho e sentei-me ao seu lado na cama.
— Vamos conseguir sair disto juntas — prometi-lhe, mesmo sem acreditar nas minhas próprias palavras.
A tensão em casa era insuportável. A mãe evitava-nos, passava os dias fechada no quarto ou saía cedo e voltava tarde. Quando nos cruzávamos na cozinha ou no corredor, o silêncio era cortante.
Uma tarde, quando cheguei da faculdade, encontrei Mariana sentada à mesa com uma carta na mão.
— É do pai — disse ela, com a voz trémula.
O meu coração disparou. Não falávamos com ele há quase dois anos, desde o divórcio turbulento. Abri a carta com mãos trémulas:
“Queridas filhas,
Sei que as coisas não têm sido fáceis entre nós desde que saí de casa. Não fui o melhor pai e lamento profundamente por tudo o que vos fiz passar. Se precisarem de ajuda, estou aqui.”
Olhei para Mariana e vi esperança nos seus olhos pela primeira vez em semanas.
— Achas que devemos ligar-lhe? — perguntou ela.
Hesitei. O pai tinha-nos magoado muito, mas naquele momento era a única tábua de salvação.
— Vamos tentar — disse finalmente.
Ligámos-lhe nessa noite. Ele atendeu ao segundo toque.
— Filhas! — A voz dele soou emocionada do outro lado da linha.
Contámos-lhe tudo: o ultimato da mãe, o desespero de não termos para onde ir, o medo do futuro. Ele ouviu em silêncio e depois disse:
— Podem vir ficar comigo em Setúbal até arranjarem solução. Não é muito grande, mas damos um jeito.
No dia seguinte fizemos as malas às escondidas da mãe. Quando saímos pela porta da frente com as mochilas às costas, ela nem apareceu para se despedir.
A viagem até Setúbal foi feita em silêncio, cada uma perdida nos seus pensamentos. O reencontro com o pai foi estranho: ele parecia mais velho, cansado, mas abriu-nos os braços e chorou connosco.
Os primeiros dias foram difíceis. O apartamento era pequeno demais para três pessoas e as feridas do passado estavam longe de sarar. O pai tentava compensar os anos perdidos com pequenos gestos: fazia-nos jantar, perguntava pelo nosso dia, oferecia-se para ajudar nas despesas.
Mas havia mágoa acumulada demais para ser esquecida tão depressa.
Uma noite, depois do jantar, sentei-me com ele na varanda enquanto Mariana tomava banho.
— Porque é que foste embora? — perguntei-lhe finalmente.
Ele suspirou fundo.
— Porque fui cobarde. Porque achei que podia ser feliz noutro lado e acabei por perder tudo o que realmente importava.
Olhei para ele e vi lágrimas nos seus olhos pela primeira vez desde que era criança.
— A mãe nunca nos perdoou — disse eu baixinho.
Ele abanou a cabeça tristemente.
— Nem eu próprio me perdoei ainda.
Os dias foram passando e comecei a procurar trabalho mais a sério. Arranjei um part-time numa livraria do centro comercial e Mariana conseguiu emprego numa loja de roupa. Dividíamos as tarefas domésticas e tentávamos reconstruir uma rotina.
Mas a ausência da mãe pesava todos os dias. Mariana chorava à noite e eu sentia-me culpada por não conseguir protegê-la melhor.
Um domingo à tarde recebi uma mensagem inesperada da mãe: “Espero que estejam bem.”
Fiquei paralisada a olhar para aquelas palavras tão simples e tão carregadas de significado. Respondi apenas: “Estamos.”
Ela nunca respondeu.
Passaram-se meses até conseguirmos arrendar um pequeno T1 em Almada. Era minúsculo e velho, mas era nosso. Pela primeira vez senti um orgulho estranho ao pagar a renda no final do mês.
A relação com o pai melhorou aos poucos, mas nunca voltou a ser como antes. Com a mãe ficou um vazio impossível de preencher.
Hoje olho para trás e vejo como aquele ultimato mudou tudo: obrigou-me a crescer à força, a descobrir quem sou sem o chão seguro da infância. Ainda me pergunto se algum dia vou conseguir perdoar a minha mãe por nos ter deixado assim à deriva.
Às vezes pergunto-me: será que ela alguma vez se arrependeu? Será que algum dia voltaremos a ser família? E vocês… conseguiriam perdoar uma mãe assim?