Mãe, Não Aguento Mais: O Dia em Que Fechei a Porta à Minha Própria Mãe
— Mãe, não posso continuar assim. Desculpa, mas tenho de pedir-te as chaves da nossa casa de volta.
As palavras saíram-me num sussurro rouco, quase inaudível, mas ecoaram na sala como um trovão. O silêncio que se seguiu foi tão denso que quase me sufocou. A minha mãe olhou para mim, olhos arregalados, como se eu tivesse acabado de a trair. A minha mulher, Inês, estava encostada à porta da cozinha, braços cruzados, tentando esconder as lágrimas que já lhe brilhavam nos olhos.
Tudo começou naquela tarde de domingo. Eu tinha acabado de chegar do supermercado, sacos nas mãos, quando ouvi vozes exaltadas vindas da sala. A minha mãe estava sentada no sofá, com o casaco ainda vestido, e Inês de pé à sua frente, rosto vermelho de raiva.
— Não admito que me trate assim na minha própria casa! — gritava a minha mãe.
— Dona Teresa, esta casa é minha e do seu filho! — respondeu Inês, tentando manter a compostura. — Não pode entrar aqui quando lhe apetece e começar a criticar tudo o que faço.
Eu fiquei parado à porta, sentindo o peso das compras a aumentar a cada segundo. O cheiro do frango assado misturava-se com o cheiro acre da tensão no ar. Larguei os sacos no chão e tentei intervir:
— Por favor, acalmem-se as duas…
Mas era tarde demais. A minha mãe levantou-se num salto e apontou-me o dedo:
— Vês o que escolheste? Uma mulher que não respeita a tua mãe! Se o teu pai fosse vivo…
— Mas não está! — gritei eu, surpreendendo-me com a força da minha própria voz. — E eu não sou mais uma criança!
O olhar dela mudou. Pela primeira vez vi medo nos olhos da minha mãe. Medo de me perder. Medo de perder o controlo.
A discussão arrastou-se durante horas. Inês trancou-se no quarto a chorar. A minha mãe ficou sentada à mesa da cozinha, mexendo no chá frio sem beber. Eu vagueava pela casa como um fantasma, tentando encontrar uma solução para um problema que parecia não ter saída.
Lembrei-me de quando era pequeno e a minha mãe me esperava à porta da escola, sempre pronta para me proteger do mundo. Lembrei-me das noites em que ela ficava acordada ao meu lado quando eu tinha febre. Mas agora era diferente. Agora ela invadia a nossa casa sem avisar, criticava tudo — desde a forma como Inês cozinhava até à maneira como arrumávamos os sapatos no hall.
Naquela noite, depois de jantar (um jantar silencioso e frio), sentei-me ao lado da minha mãe na sala.
— Mãe… — comecei, hesitante — eu amo-te. Mas tens de perceber que esta casa é minha e da Inês. Não podes entrar assim, sem avisar.
Ela olhou para mim com uma tristeza profunda.
— Então é isso? Vais escolher essa mulher em vez de mim?
— Não é isso… — tentei explicar — mas preciso de proteger o meu casamento. Preciso que respeites o nosso espaço.
Ela levantou-se devagar, tirou as chaves do bolso e pousou-as na mesa com um gesto teatral.
— Muito bem. Fica com as tuas chaves. Fica com a tua mulher. Mas lembra-te: uma mãe nunca se esquece.
Saiu sem olhar para trás. O som da porta a bater ecoou pela casa como um tiro.
Fiquei ali sentado durante minutos que pareceram horas. Senti-me vazio. Senti-me culpado. Senti-me livre.
Inês saiu do quarto e sentou-se ao meu lado.
— Fizeste o que tinhas de fazer — disse ela baixinho, pegando-me na mão.
Mas eu sabia que nada voltaria a ser igual.
Nos dias seguintes tentei ligar à minha mãe várias vezes. Ela não atendeu. Enviei mensagens, escrevi cartas, até fui bater-lhe à porta. Nada.
O Natal aproximava-se e o vazio crescia dentro de mim. A família dividida, os silêncios pesados ao telefone com a minha irmã Sofia, que me acusava de ser egoísta:
— O que fizeste à mãe foi cruel! Ela só quer sentir-se parte da tua vida!
Mas ninguém parecia perceber que eu também precisava de respirar. Que também tinha direito ao meu espaço, à minha felicidade.
Na véspera de Natal, sentei-me sozinho na sala escura, olhando para as luzes piscantes da árvore. Inês estava na cozinha a preparar rabanadas, tentando fingir normalidade.
De repente ouvi uma mensagem no telemóvel. Era da minha mãe:
“Feliz Natal, filho. Espero que estejas bem. Amo-te sempre.”
Chorei como há muito não chorava. Senti saudades dela, saudades do tempo em que tudo era simples.
No dia seguinte fomos almoçar a casa da minha irmã. A tensão era palpável. A minha mãe evitava olhar para mim, mas percebi-lhe os olhos húmidos quando me aproximei para lhe dar um beijo.
Durante o almoço ninguém falou do assunto. Fingimos todos que estava tudo bem. Mas não estava.
À noite, já em casa, sentei-me no sofá com Inês e perguntei-lhe:
— Achas que fiz bem?
Ela abraçou-me em silêncio.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível amar duas famílias ao mesmo tempo sem magoar ninguém? Será que algum dia vou conseguir perdoar-me por ter fechado aquela porta?
E vocês? O que fariam no meu lugar?