Quando o Meu Mundo Ruiu: Entre a Minha Mãe e o Meu Marido

— Não posso ir contigo, Inês. Não agora. — A voz do Tiago ecoou pela cozinha, baixa mas firme, enquanto eu apertava o pano da loiça com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.

Por um momento, achei que não tinha ouvido bem. O camião de mudanças já estava na rua, as caixas empilhadas junto à porta e a nossa filha, Leonor, brincava no tapete sem perceber que o mundo dos pais estava prestes a desabar.

— Como assim não podes? — perguntei, tentando controlar o tremor na voz. — Já está tudo combinado! O contrato da casa em Lisboa, o teu novo emprego… O que é que se passa?

Tiago desviou o olhar para o chão. — A minha mãe não está bem. Desde que o meu pai morreu, ela… Ela precisa de mim aqui. Não posso deixá-la sozinha agora.

A raiva subiu-me à garganta como fel. Dona Lurdes sempre foi presente, sim — demasiado presente. Trazia bolos caseiros, oferecia-se para ficar com a Leonor, mas também criticava cada decisão minha: desde a sopa que eu fazia até à forma como vestia a neta. E agora, Tiago escolhia-a a ela. Não a mim. Não à nossa família.

— E eu? E a Leonor? — perguntei, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair. — Vamos sozinhas para Lisboa?

Ele não respondeu. Limitou-se a encolher os ombros e saiu da cozinha, deixando-me ali, rodeada de caixas e de um silêncio ensurdecedor.

Naquela noite, dormi no sofá. Leonor acordou a meio da noite a chamar pelo pai. Fui até ao quarto dela e sentei-me na beira da cama.

— O papá vai ficar com a avó por uns tempos, querida — sussurrei-lhe, tentando sorrir. Mas por dentro sentia-me vazia.

No dia seguinte, Dona Lurdes apareceu cedo em nossa casa. Entrou sem bater, como sempre fazia.

— Inês, querida, ouvi dizer que vais para Lisboa sozinha. Não achas melhor repensar? A Leonor precisa do pai.

Olhei-a nos olhos e vi ali uma faísca de triunfo. Como se tivesse ganho uma batalha silenciosa que eu nem sabia que estava a travar.

— A Leonor precisa de estabilidade — respondi. — E eu preciso de seguir em frente.

Ela suspirou e pousou uma mão no meu ombro. — Tu nunca foste feita para a cidade grande. Vais ver que voltas para cá num instante.

A viagem para Lisboa foi um turbilhão de emoções. Leonor dormiu quase todo o caminho, agarrada ao seu peluche preferido. Eu chorava baixinho ao volante, tentando imaginar como seria a vida sem Tiago ao meu lado.

Os primeiros dias foram um caos: caixas por abrir, Leonor estranhando a nova escola, eu perdida entre entrevistas de emprego e saudades do que deixei para trás. Todas as noites ligava ao Tiago. No início ele atendia, perguntava pela filha, dizia que sentia saudades. Mas com o tempo as chamadas tornaram-se mais curtas. Mais frias.

Uma noite, depois de adormecer Leonor, sentei-me na varanda do nosso pequeno apartamento e liguei à minha mãe.

— Mãe, sinto-me tão sozinha… — confessei-lhe.

Ela ficou em silêncio durante uns segundos antes de responder:

— Inês, às vezes é preciso perder tudo para percebermos quem realmente somos.

As palavras dela ficaram comigo durante semanas. Comecei a sair mais com colegas do trabalho novo, inscrevi-me num curso de fotografia e levei Leonor aos parques da cidade sempre que podia. Aos poucos, fui reconstruindo uma rotina só nossa.

Mas as feridas não saravam facilmente. Um dia, ao ir buscar Leonor à escola, encontrei uma mensagem do Tiago:

“A minha mãe caiu e partiu o braço. Preciso mesmo de ficar cá mais tempo. Desculpa.”

Senti uma mistura de pena e raiva. Até quando seria eu a ceder? Até quando seria Dona Lurdes o centro do universo dele?

No Natal desse ano, decidi voltar à terra para visitar os meus pais e permitir que Leonor visse o pai. Quando cheguei à casa da sogra, fui recebida com um sorriso frio.

— Olha quem voltou… — disse Dona Lurdes. — Estás mais magra. Não tens comido?

Tiago apareceu no corredor e abraçou Leonor com força. Olhou para mim por cima da cabeça dela e murmurou:

— Podemos falar?

Fomos até ao quintal gelado.

— Inês… Eu sinto muito por tudo isto — começou ele. — Mas não consigo deixar a minha mãe sozinha.

— E eu? — perguntei outra vez. — E a tua filha?

Ele passou as mãos pelo cabelo, nervoso.

— Não sei… Sinto-me preso entre vocês as duas.

Nesse momento percebi: nunca fui prioridade dele. Sempre fui “a outra” na vida dele — depois da mãe.

Regressei a Lisboa com o coração despedaçado mas determinada a não me perder mais naquela teia de dependências familiares.

Os meses passaram e fui aprendendo a viver só comigo mesma e com Leonor. Fiz novas amizades; comecei a fotografar casamentos aos fins-de-semana; Leonor adaptou-se à escola nova e fez amigos.

Tiago ligava cada vez menos. Um dia recebi uma carta dele: queria oficializar a separação.

Chorei tudo o que tinha para chorar nessa noite. Depois limpei as lágrimas e escrevi-lhe de volta:

“Espero que encontres paz ao lado da tua mãe. Eu vou encontrar a minha ao lado da nossa filha.”

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquela manhã em que fiquei sozinha na cozinha rodeada de caixas e sonhos desfeitos.

Pergunto-me: quantas mulheres já passaram por isto? Quantas vezes deixamos de ser prioridade na vida de quem amamos? Será que algum dia aprendemos verdadeiramente a escolher-nos primeiro?