Entre Silêncios e Lágrimas: O Dia em que Perdi a Minha Mãe

— Por que é que nunca me ouves, Mariana? — gritou a minha mãe da cozinha, enquanto eu subia as escadas com os fones nos ouvidos, fingindo não escutar.

Naquele momento, tudo o que queria era distância. O cheiro do café queimado misturava-se com o som abafado da televisão e com o bater dos talheres no balcão. A minha mãe sempre foi assim: intensa, preocupada, às vezes sufocante. Mas agora, daria tudo para ouvir mais uma vez a sua voz, mesmo que fosse para me ralhar.

Naquela manhã de novembro, acordei tarde. Tinha passado a noite anterior a discutir com ela sobre o meu futuro. Ela queria que eu fosse para a faculdade em Lisboa, estudar Direito como o meu pai. Eu queria ser artista plástica, pintar as paredes do mundo com as cores que via nos meus sonhos. A discussão foi feia. Disse coisas horríveis, palavras que agora me pesam no peito como pedras: “Nunca me compreendes! Só sabes controlar a minha vida!”. Ela chorou. Eu bati com a porta do quarto.

O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a ouvir os soluços dela do outro lado da parede fina. O meu pai estava ausente, como sempre — perdido no trabalho ou talvez em si mesmo. O meu irmão mais novo, Tiago, tentava fingir que nada se passava, colado ao telemóvel.

Na manhã seguinte, desci as escadas devagar. O cheiro do café queimado ainda pairava no ar. A minha mãe estava sentada à mesa, de costas para mim. Hesitei antes de falar:

— Mãe…

Ela não respondeu. Toquei-lhe no ombro e senti o frio da sua pele. O mundo parou. Gritei por ajuda, mas já era tarde demais. O médico disse que foi o coração — “morte súbita”, chamaram-lhe. Mas para mim foi como se tivesse sido eu a matá-la com as minhas palavras.

O funeral foi um borrão de rostos conhecidos e desconhecidos, lágrimas e abraços apertados demais. O meu pai chorou pela primeira vez na vida. O Tiago não largava a mão dela até ao último segundo. Eu sentia-me vazia, como se tivesse sido arrancada de mim mesma.

Os dias seguintes foram um desfile de rotinas quebradas: o pequeno-almoço sem o pão quente dela, a ausência do seu perfume no corredor, o silêncio absoluto à hora do jantar. O meu pai mergulhou no trabalho ainda mais fundo. O Tiago fechou-se no quarto e deixou de falar comigo.

Uma noite, não aguentei mais e bati à porta dele:

— Tiago, por favor… fala comigo.

Ele abriu a porta devagar, olhos vermelhos:

— A culpa é tua! Se não tivesses discutido com ela…

As palavras cortaram-me como facas. Fechei-me no meu quarto e chorei até adormecer.

Comecei a evitar a casa. Passava horas a caminhar pelas ruas de Setúbal, sentando-me no jardim onde costumávamos ir juntas quando eu era pequena. Lembrava-me das histórias que ela inventava para me fazer rir, das tardes em que pintávamos juntas no quintal.

Uma tarde, encontrei a Dona Rosa, vizinha do lado:

— Mariana, querida… a tua mãe tinha tanto orgulho em ti. Falava de ti todos os dias.

Senti um nó na garganta:

— Não pode ser verdade… eu só lhe dei desgostos.

Ela segurou-me as mãos:

— As mães perdoam tudo. E ela sabia que tu a amavas.

Mas será que sabia mesmo? Nunca lhe disse isso nos últimos tempos. Só lhe mostrei raiva e frustração.

As semanas passaram e a culpa tornou-se uma sombra constante. Comecei a ter pesadelos: via a minha mãe sentada à mesa da cozinha, de costas para mim, imóvel. Tentava pedir-lhe desculpa mas ela nunca se virava.

Procurei ajuda numa psicóloga do centro de saúde. Falei-lhe dos meus medos, da culpa insuportável:

— Sinto que nunca vou conseguir perdoar-me.

Ela olhou-me com ternura:

— O luto é um processo difícil e cada um tem o seu tempo. Mas perdoar-se é um passo fundamental para seguir em frente.

Perguntou-me se havia algo que gostaria de ter dito à minha mãe. Escrevi-lhe uma carta naquela noite:

“Mãe,
Desculpa por todas as vezes que te magoei com as minhas palavras. Desculpa por não ter percebido o quanto me amavas à tua maneira. Sinto tanto a tua falta. Espero que consigas perdoar-me onde estiveres.
Amo-te sempre,
Mariana”

Li a carta em voz alta no jardim onde costumávamos ir juntas. Senti uma brisa suave e, por um instante, pareceu-me ouvir o riso dela ao longe.

Aos poucos, comecei a reconstruir pontes com o Tiago. Um dia sentei-me ao lado dele no sofá:

— Sei que estás zangado comigo… mas também sinto muito a falta dela.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas:

— Eu também…

Abraçámo-nos e chorámos juntos.

O meu pai continuou distante durante meses até um dia me chamar à cozinha:

— Mariana… desculpa por não ter estado mais presente. A tua mãe era o pilar desta casa e agora sinto-me perdido.

Sentei-me ao lado dele e ficámos ali em silêncio, partilhando uma dor sem palavras.

Voltei a pintar — primeiro timidamente, depois com mais coragem. Pintei um quadro da minha mãe sentada no jardim, rodeada de flores amarelas (as suas preferidas). Expus esse quadro numa pequena galeria local e escrevi ao lado: “Para todas as mães que partem cedo demais e para todos os filhos que ficam com palavras por dizer”.

Hoje ainda sinto saudades todos os dias. A culpa já não me sufoca como antes, mas ainda me visita nos momentos mais silenciosos da noite.

Pergunto-me muitas vezes: será possível perdoarmo-nos verdadeiramente? Como é que se aprende a viver com aquilo que ficou por dizer?

E vocês? Já sentiram esta culpa? Como encontraram perdão?