Entre o Amor de Mãe e o Peso da Injustiça: A História de Inês
— Não podes estar a falar a sério, mãe! — gritei, sentindo as palavras rasgarem-me a garganta. O silêncio pesado da cozinha só era interrompido pelo tique-taque do velho relógio de parede. A minha mãe, Maria do Carmo, olhava para mim com aquele olhar cansado, como se já tivesse vivido esta discussão mil vezes na cabeça.
— Inês, o teu irmão precisa mais do que tu agora. Ele está a começar o negócio dele, sabes como é difícil… — respondeu ela, a voz baixa, quase envergonhada.
Senti um nó apertar-se no estômago. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o sabor amargo da traição. Eu tinha acabado de descobrir que estava grávida. O teste ainda estava na minha mala, embrulhado num lenço, como se pudesse esconder a realidade só por não a mostrar a ninguém. E agora isto: toda a esperança de algum apoio da minha mãe esfumava-se diante dos meus olhos.
— E eu, mãe? Eu não preciso? — perguntei, tentando controlar as lágrimas. — Achas que é fácil criar um filho sozinha? O Miguel nem sequer quer saber…
Ela desviou o olhar, mexendo nervosamente na chávena de chá.
— Tu sempre foste forte, filha. Sempre te desenrascaste…
Aquelas palavras caíram-me em cima como pedras. Sempre fui forte porque nunca tive escolha. O meu irmão, Rui, sempre foi o menino dos olhos dela. Quando ele foi apanhado a copiar nos exames, ela disse que era pressão. Quando perdeu o emprego por faltar demasiadas vezes, ela disse que era azar. Agora, com trinta anos e uma ideia mirabolante de abrir uma loja de bicicletas elétricas em Setúbal, era ele quem precisava de tudo.
Lembrei-me das noites em que ficava acordada a estudar para conseguir bolsa na universidade, enquanto o Rui saía com os amigos e voltava às tantas. Lembrei-me das vezes em que pedi à minha mãe para me ajudar com as propinas e ela dizia que não podia — mas depois comprava um telemóvel novo ao Rui.
— Mãe, eu estou grávida — disse finalmente, a voz tremendo.
Ela ficou imóvel. O silêncio tornou-se insuportável.
— Grávida? — murmurou. — Do Miguel?
Assenti. Não havia como negar.
— E ele sabe?
— Não quer saber — respondi, sentindo-me encolher por dentro. — Disse que não está preparado para ser pai.
A minha mãe passou as mãos pelo rosto, como se quisesse apagar tudo aquilo.
— Oh filha… eu não sabia…
— Pois não sabias porque nunca perguntas! — explodi. — Nunca perguntas como estou! Só te preocupas com o Rui!
Ela levantou-se devagar e veio abraçar-me. O abraço dela era quente, mas senti-o distante, como se houvesse uma parede invisível entre nós.
— Eu só quero o melhor para vocês os dois…
Afastei-me.
— Não parece. Parece que só queres o melhor para ele.
Saí da cozinha antes que ela pudesse responder. Subi para o meu quarto e fechei a porta com força. Sentei-me na cama e deixei as lágrimas correrem livremente. Olhei para o teste de gravidez na mala e senti um medo avassalador. Como ia eu criar um filho sozinha? O meu salário de assistente administrativa mal dava para pagar o quarto alugado em Lisboa e as contas do mês.
O telefone vibrou: mensagem do Rui.
«Obrigado por convenceres a mãe a ajudar-me! Prometo que vou fazer isto valer a pena.»
Ri-me amargamente. Claro que ele nem imaginava o que se passava comigo. Para ele, eu era só a irmã responsável que nunca dava problemas.
Naquela noite não dormi. Fiquei a pensar em todas as escolhas que me trouxeram até ali: os sacrifícios, as noites em claro, os sonhos adiados para ajudar em casa quando o pai morreu. Lembrei-me da última vez que me senti verdadeiramente feliz: tinha dez anos e a mãe levou-nos à praia da Comporta num domingo de verão. O Rui perdeu-se na areia e eu fui procurá-lo; quando o encontrei, ela abraçou-nos aos dois como se fôssemos o seu maior tesouro.
Onde é que tudo se perdeu?
No dia seguinte fui trabalhar como se nada fosse. Sentei-me à secretária, respondi a emails, atendi telefonemas com um sorriso falso. Mas por dentro sentia-me vazia. Ao almoço liguei à minha melhor amiga, Joana.
— Inês? Estás bem? — perguntou ela assim que atendi.
— Estou grávida — disse-lhe sem rodeios.
Houve um silêncio do outro lado.
— E o Miguel?
— Não quer saber… E a minha mãe deu todo o dinheiro ao Rui.
Joana suspirou.
— Queres vir cá jantar hoje? Fazemos pizza e falamos.
Aceitei sem pensar duas vezes. Precisava de alguém do meu lado.
À noite, sentada à mesa da Joana com uma fatia de pizza fria na mão, contei-lhe tudo: o favoritismo da minha mãe, o medo de não conseguir dar conta do recado sozinha, a raiva de ver sempre o Rui ser perdoado e ajudado enquanto eu tinha de ser forte.
— Tens de falar com ela outra vez — disse Joana. — Explica-lhe como te sentes. Às vezes os pais não veem aquilo que está mesmo à frente deles.
— E se ela não quiser ouvir?
Joana encolheu os ombros.
— Então tens de pensar em ti e no teu bebé. Não podes viver sempre à espera da aprovação dela.
Voltei para casa tarde nessa noite. A minha mãe estava sentada no sofá à espera.
— Podemos falar? — perguntou ela.
Sentei-me ao lado dela, mas mantive alguma distância.
— Eu sei que falhei contigo — começou ela, os olhos marejados de lágrimas. — Sempre achei que tu eras forte demais para precisares de mim… Mas agora vejo que te deixei sozinha quando mais precisavas.
Olhei para ela sem saber o que dizer. Parte de mim queria perdoá-la ali mesmo; outra parte queria gritar-lhe tudo o que tinha guardado durante anos.
— Mãe… eu só queria sentir que também sou importante para ti — disse finalmente. — Que também mereço ser ajudada.
Ela pegou nas minhas mãos.
— És tudo para mim, filha. Só tenho medo de te desiludir…
Chorámos as duas ali mesmo no sofá, abraçadas como há muito não fazíamos. Mas no fundo sabia que nada ia mudar de um dia para o outro. O Rui continuaria a ser protegido; eu continuaria a ser forte porque não tinha alternativa.
Nos dias seguintes tentei focar-me no trabalho e nos preparativos para a chegada do bebé. Comecei a procurar apartamentos mais baratos nos arredores de Lisboa e informei-me sobre apoios sociais para mães solteiras. A Joana ajudou-me com tudo: desde procurar creches até escolher nomes para o bebé (ela insistia em Matilde ou Tomás).
O Rui ligou-me uma vez:
— Ouvi dizer que vais ser mãe! Parabéns! Se precisares de alguma coisa diz…
Agradeci educadamente mas desliguei rápido. Não queria ouvir promessas vazias.
A minha mãe começou a aparecer mais vezes: trazia sopa feita, perguntava como me sentia, oferecia-se para ir comigo às consultas. Era estranho vê-la assim tão presente depois de tantos anos de ausência emocional. Mas aceitei cada gesto como quem recolhe migalhas depois da fome.
O tempo passou depressa e quando dei por mim já tinha uma barriga redonda e pesada. O medo continuava lá — medo de falhar, medo de não ser suficiente — mas agora misturava-se com uma esperança tímida: talvez conseguisse dar ao meu filho aquilo que nunca tive completamente.
No dia em que a Matilde nasceu (sim, acabei por escolher o nome que a Joana sugeriu), olhei para aquele pequeno ser nos meus braços e prometi-lhe baixinho:
— Nunca vais sentir-te menos importante do que ninguém nesta família.
A minha mãe chorou ao pegar nela ao colo pela primeira vez; vi nos olhos dela um pedido silencioso de perdão por todos os anos perdidos entre preferências e silêncios cúmplices.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente quem nos magoa sem querer? Ou será que passamos a vida inteira à procura desse amor incondicional que só existe nos nossos sonhos? Talvez nunca saiba responder… Mas sei que agora tenho alguém por quem vale a pena tentar todos os dias.