Quatro Paredes, Quatro Destinos: A Vida Num T0 em Lisboa
— Não há espaço para mais ninguém aqui, mãe! — gritei, sentindo o peito apertado, enquanto olhava para a minha mãe, Maria do Carmo, parada à porta com duas malas e um olhar cansado. O meu marido, Rui, tentava acalmar o nosso filho, Tomás, que já choramingava por não poder brincar com os Legos espalhados pelo chão. O cheiro a café requentado misturava-se com o suor do fim do dia e o barulho dos carros na Avenida Almirante Reis.
A minha mãe não respondeu logo. Olhou para mim como quem pede desculpa sem palavras. — Filha, não tenho para onde ir. O senhorio aumentou a renda outra vez. Não consigo pagar.
Senti-me a desmoronar por dentro. O nosso T0 mal tinha espaço para nós três. A cama de casal encostada à parede, o sofá-cama onde Tomás dormia, a mesa minúscula que servia de escritório e sala de jantar. E agora… mais uma pessoa. Mais uma vida cheia de dores, segredos e mágoas antigas.
Rui olhou-me de lado, tentando perceber se eu ia ceder. — Isa, não podemos deixá-la na rua — murmurou ele, baixinho.
— Eu sei — respondi, quase sem voz. — Mas…
Mas o quê? Que não aguentava mais? Que já me sentia sufocada todos os dias? Que o barulho da cidade era menos ensurdecedor do que o silêncio entre mim e a minha mãe?
Naquela noite, dormimos todos juntos pela primeira vez. Tomás entre mim e Rui, a minha mãe no sofá-cama. O som da sua respiração pesada misturava-se com os meus pensamentos: como é que chegámos aqui?
Acordei cedo com o cheiro a torradas queimadas. A minha mãe já estava na cozinha minúscula, a tentar preparar o pequeno-almoço sem fazer barulho. — Desculpa — sussurrou ela quando me viu. — Não queria incomodar.
— Não faz mal — menti.
Os dias seguintes foram um teste à nossa sanidade. Cada gesto era motivo para discussão: quem usava primeiro a casa de banho, quem lavava a loiça, quem ficava com o comando da televisão. Tomás começou a fazer birras mais vezes. Rui chegava mais tarde do trabalho, dizendo que tinha reuniões, mas eu sabia que era só para evitar o caos.
Uma noite, depois de Tomás adormecer, sentei-me à janela com a minha mãe. O luar entrava tímido pelo vidro sujo.
— Lembras-te quando vivíamos em Almada? — perguntou ela, com um sorriso triste.
— Lembro — respondi, tentando não chorar. — Era tudo mais fácil.
— Não era — corrigiu ela. — Eu só fingia que era.
Ficámos em silêncio. Havia tanto por dizer entre nós, mas as palavras pareciam sempre presas na garganta.
No fim-de-semana seguinte, Rui perdeu a paciência. Encontrou-me na casa de banho, sentada na tampa da sanita a chorar baixinho.
— Isa, isto não pode continuar assim. Estamos todos a sufocar.
— O que queres que faça? Que ponha a minha mãe na rua?
Ele suspirou. — Não sei. Mas precisamos de regras. De espaço para cada um respirar.
Decidimos fazer uma reunião familiar. Sentámo-nos todos à volta da mesa — eu, Rui, Tomás (a brincar com um carrinho), e a minha mãe.
— Temos de nos organizar — comecei eu. — Cada um precisa do seu tempo e do seu espaço.
A minha mãe acenou com a cabeça. — Eu posso sair durante o dia para procurar trabalho ou passear.
Rui sugeriu um horário para as tarefas domésticas. Tomás prometeu tentar arrumar os brinquedos (mas logo se esqueceu).
Durante algum tempo funcionou. A minha mãe arranjou um trabalho temporário numa pastelaria ali perto. Eu comecei a sentir menos raiva e mais pena dela. Um dia cheguei a casa e encontrei-a sentada no chão do quarto, com uma caixa de fotografias antigas.
— Estava a arrumar isto… — disse ela, mostrando-me uma foto minha em criança.
Sentei-me ao lado dela e começámos a falar do passado: do meu pai que nos deixou quando eu tinha oito anos; das noites em que ela chorava sozinha na cozinha; das vezes em que eu prometi nunca ser como ela…
— Desculpa se te falhei — disse ela, com lágrimas nos olhos.
— Eu também falhei contigo — respondi.
Foi ali que percebi: talvez nunca tivéssemos tido espaço suficiente para sermos mãe e filha como devíamos ser. Talvez fosse preciso este aperto físico para finalmente nos vermos uma à outra.
Mas as coisas não ficaram fáceis de repente. O dinheiro continuava curto; as discussões voltavam sempre que alguém estava cansado demais ou triste demais para fingir que estava tudo bem.
Uma noite, ouvi Rui ao telefone com alguém:
— Não sei quanto tempo mais aguento isto… A Isa está diferente… Sinto que estou a perder a minha família.
O coração caiu-me aos pés. Será que estava mesmo a perder tudo?
No dia seguinte confrontei-o:
— Queres ir embora?
Ele olhou-me nos olhos: — Quero voltar a ter-te só para mim… mas não quero abandonar ninguém.
Chorámos juntos nessa noite. E pela primeira vez em muito tempo senti-me menos sozinha.
Os meses passaram devagarinho. A minha mãe conseguiu juntar dinheiro suficiente para alugar um quarto num bairro vizinho. No dia em que saiu de casa, abraçou-me com força:
— Obrigada por não me deixares cair.
Fiquei ali parada à porta depois dela sair, sentindo-me vazia e cheia ao mesmo tempo.
Hoje olho para trás e penso: será que teria feito diferente? Será que o amor chega quando o espaço falta? Ou será precisamente na falta de espaço que aprendemos o verdadeiro significado de família?
E vocês? Já sentiram que estavam prestes a sufocar… mas acabaram por encontrar ar onde menos esperavam?