“Só um pouco de dinheiro para comer!” — O dia em que a minha família se desfez na porta do supermercado

— Mãe, por favor, não ignores! — supliquei, sentindo o nó apertar-se-me na garganta enquanto aquela mulher, de lenço azul desbotado e olhos fundos, estendia a mão à porta do Pingo Doce. O cheiro a pão quente misturava-se com o frio cortante da manhã de janeiro em Braga. A minha mãe apertou-me o braço com força, sem me olhar nos olhos.

— Não temos nada para dar, Mariana. Anda, não te metas nisso — murmurou, tentando passar depressa, mas eu sentia o olhar da mulher cravar-se-me nas costas.

O meu pai vinha atrás, carrancudo, com a minha irmã mais nova pela mão. Tinha perdido o emprego há dois meses e cada ida ao supermercado era uma operação matemática: contas feitas de cabeça, lista reduzida ao essencial. Mas aquela mulher…

— Só um pouco de dinheiro para comer! — ela pediu de novo, a voz rouca, quase desesperada.

A minha irmã agarrou-se à perna do pai. — Pai, ela tem fome…

O meu pai parou. Olhou para a mulher, depois para mim. O orgulho dele era uma muralha. Sempre nos ensinou que pedir era humilhante, que se devia trabalhar para ter. Mas naquele momento, vi-lhe nos olhos algo diferente: talvez raiva, talvez medo de um dia ser ele ali.

— Não temos — disse ele secamente. Mas a mulher não desviou o olhar.

— Só um pão… — insistiu ela, baixando os olhos para os sapatos gastos.

A minha mãe puxou-nos para dentro do supermercado. Lá dentro, o ambiente era outro: luzes fortes, música ambiente, pessoas apressadas com carrinhos cheios. Mas eu não conseguia esquecer o rosto dela.

— Mariana, não penses mais nisso — sussurrou a minha mãe enquanto escolhia batatas. — Não sabemos quem é aquela mulher. Há muita gente que finge precisar…

— Mas e se ela não estiver a fingir? — rebati, sentindo as lágrimas ameaçarem saltar.

O meu pai ouviu e bufou. — Isto agora está cheio de gente assim. Se dermos a todos, ficamos nós sem nada.

A discussão continuou em surdina entre eles. A minha irmã calou-se, os olhos muito abertos. Eu sentia-me dividida: queria ajudar, mas também sabia que em casa as coisas estavam difíceis. O desemprego do meu pai tinha mudado tudo: as discussões eram mais frequentes, o silêncio mais pesado.

Quando saímos do supermercado, a mulher ainda lá estava. Agora sentada no chão, abraçada aos joelhos. O saco das compras pesava-me nos braços e na consciência.

— Esperem — disse eu de repente. Tirei um pão do saco e aproximei-me dela.

— Obrigada, menina — murmurou ela, os olhos brilhando de lágrimas.

O meu pai ficou furioso. — Mariana! Não te disse para não te meteres?

— Ela tem fome! — gritei-lhe de volta, sentindo o rosto arder.

As pessoas olhavam. A minha mãe tentou acalmar-nos, mas o meu pai estava vermelho de raiva.

— Não percebes que isto é perigoso? Que há gente que se aproveita?

A mulher olhou para ele e disse baixinho:

— Eu tinha uma filha como tu… Antes de tudo isto.

O silêncio caiu pesado. O meu pai desviou o olhar e puxou-nos para casa.

Nessa noite, a discussão continuou à mesa do jantar.

— Não podemos ajudar toda a gente! — insistia o meu pai. — E se amanhã formos nós ali?

A minha mãe chorava baixinho. A minha irmã não tocou na comida. Eu sentia-me culpada por ter dado o pão e culpada por não ter feito mais.

Os dias passaram e a imagem daquela mulher não me saía da cabeça. Comecei a reparar em mais pessoas como ela: à porta da igreja, no parque, junto ao café onde costumava ir com as amigas antes de tudo ficar tão caro que já nem um galão podia pedir sem pensar duas vezes.

Uma tarde, encontrei-a outra vez. Estava sentada num banco do jardim, com o mesmo lenço azul e um ar ainda mais cansado.

— Olá — disse eu timidamente.

Ela sorriu-me com tristeza.

— Ainda tens pão? — perguntou em tom de brincadeira amarga.

Sentei-me ao lado dela. Falámos durante horas. Chamava-se Rosa. Tinha sido empregada de limpeza num lar de idosos até adoecer e perder tudo: trabalho, casa, família. O marido tinha-a deixado quando ficou doente; a filha fora viver para Lisboa e nunca mais lhe falara.

— Sabe… às vezes penso que era melhor não acordar amanhã — confessou ela num sussurro.

Senti uma dor funda no peito. Pensei na minha família: nas discussões, no medo constante do futuro, mas também no amor que ainda nos unia apesar de tudo.

Quando cheguei a casa contei à minha mãe sobre Rosa. Ela ouviu-me em silêncio e depois abraçou-me com força.

— Fizeste bem em ouvi-la — disse ela baixinho. — Às vezes esquecemo-nos que por trás de cada mão estendida há uma história.

O meu pai demorou mais tempo a aceitar. Durante semanas evitava falar do assunto. Mas um dia vi-o parar junto à Rosa e dar-lhe discretamente uma sandes embrulhada num guardanapo.

A vida não melhorou logo para nós: o meu pai só arranjou trabalho meses depois; as contas continuaram apertadas; as discussões não desapareceram completamente. Mas algo mudou: começámos a olhar mais uns pelos outros e pelos outros lá fora.

Rosa acabou por conseguir um quarto numa pensão social graças à ajuda de uma assistente da Junta de Freguesia que eu própria procurei depois de ouvir a sua história. Ainda hoje trocamos cartas; ela chama-me “a menina do pão”.

Às vezes pergunto-me: quantas Rosas passam por nós todos os dias sem que reparemos? E se fosse eu ali sentada no chão frio? O que faria cada um de nós se tivesse de escolher entre o orgulho e a compaixão?

Será que aprendemos mesmo alguma coisa sobre dignidade quando fechamos os olhos ao sofrimento dos outros?