O Nome da Minha Filha é Aurora – E Não Me Arrependo

— Aurora? Mas que raio de nome é esse, Hazel? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de reprovação. Eu estava sentada à mesa, com a pequena Aurora nos braços, ainda envolta no cobertor cor-de-rosa que a avó tinha tricotado, ironicamente, antes de saber o nome que eu escolheria para a neta.

O silêncio caiu sobre nós como uma nuvem pesada. O meu pai, sentado ao lado dela, olhou para mim por cima dos óculos, hesitando entre intervir ou manter-se calado. Eu sentia o coração apertado, mas respirei fundo e respondi:

— Mãe, é um nome bonito. Significa “amanhecer”. Quero que a minha filha traga luz para as nossas vidas.

Ela bufou, cruzando os braços.

— Isso é nome de gente fina, dessas novelas brasileiras. Aqui em Portugal ninguém se chama assim. Vais arranjar problemas à miúda na escola.

Eu sabia que não era só a minha mãe que pensava assim. Desde que publiquei a primeira foto da Aurora no Facebook, os comentários começaram a chover. “Que nome estranho!”, “Coitada da menina”, “Isso nem parece português!”. Alguns eram de conhecidos, outros de completos estranhos. O que mais me magoou foi ler: “Hazel sempre foi diferente, agora quer ser especial à força”.

Passei noites em claro, com Aurora a dormir no berço ao lado da minha cama, enquanto eu rolava o feed do telemóvel e lia cada crítica como se fosse uma facada. O Pedro, meu marido, tentava acalmar-me.

— Não ligues, amor. As pessoas falam porque não têm mais nada para fazer.

Mas eu ligava. Sempre liguei. Cresci numa aldeia pequena perto de Aveiro, onde todos conhecem todos e qualquer diferença é motivo de cochicho. Quando decidi estudar Letras na Universidade do Porto, já ouvi comentários: “Hazel vai para a cidade e volta cheia de manias”. O meu nome já era motivo de gozo — Hazel, por causa do livro favorito da minha mãe adolescente, mas que agora parecia arrepender-se da ousadia.

A escolha do nome Aurora foi uma promessa silenciosa: a minha filha teria liberdade para ser quem quisesse. Mas agora parecia que eu a estava a condenar ao mesmo destino de olhares tortos e risos abafados.

Uma noite, depois de mais um comentário maldoso — “Com esse nome vai ser gozada toda a vida” — sentei-me no sofá com Aurora ao colo e chorei baixinho. O Pedro sentou-se ao meu lado e puxou-me para junto dele.

— Lembras-te do que disseste quando soubemos que era uma menina? Que querias que ela tivesse um nome forte, bonito, cheio de significado. Não deixes que te roubem isso.

Olhei para a minha filha. Os olhos dela eram grandes e curiosos, como se já percebessem o mundo complicado em que tinha nascido. Senti uma onda de raiva e proteção crescer dentro de mim.

No dia seguinte, escrevi um texto longo no Facebook:

“Chama-se Aurora porque acredito em recomeços e em luz depois da escuridão. Chama-se Aurora porque quero que ela saiba que pode ser diferente sem ter vergonha disso. Se não gostam do nome da minha filha, guardem para vocês. Ela é minha e eu amo-a assim.”

O post teve dezenas de partilhas e comentários — alguns de apoio, outros ainda mais cruéis. A minha mãe ligou-me nesse dia à noite.

— Estás a expor demasiado a menina. Não vês que só arranjas problemas?

— Mãe, tu própria escolheste um nome diferente para mim há trinta anos. Porque é que agora não aceitas?

Ela ficou em silêncio por uns segundos.

— Eu era nova… achei que era bonito. Mas tu sabes como foi difícil para ti na escola.

— Sei. Mas também sei que sobrevivi. E aprendi a gostar do meu nome porque tu me ensinaste isso.

Do outro lado da linha ouvi um soluço abafado.

— Só quero proteger-vos.

— Eu sei, mãe. Mas proteger não é esconder quem somos.

Os dias passaram e as críticas foram diminuindo, substituídas por mensagens de mães que também tinham escolhido nomes diferentes para os filhos: Matilde, Santiago, Leonor… nomes que há vinte anos seriam considerados estranhos na nossa terra.

No supermercado, ouvi duas senhoras comentarem:

— Olha ali vai a Hazel com a filha… Como é mesmo o nome? Aurora? Que modernices!

Sorri-lhes e continuei o meu caminho com a cabeça erguida. Pela primeira vez em muito tempo senti orgulho — não só por mim, mas por todas as mães que ousam desafiar tradições e criar novos caminhos para os filhos.

A relação com a minha mãe melhorou devagarinho. Um dia apareceu lá em casa com um babygrow bordado: “Aurora – o nosso amanhecer”. Chorámos as duas na cozinha enquanto Aurora dormia no carrinho.

Hoje olho para a minha filha e penso em tudo o que já enfrentámos juntas — mesmo antes dela aprender a falar ou andar. Sei que ainda virão desafios: perguntas na escola, olhares curiosos ou maldosos, talvez até dúvidas dela própria sobre o nome que lhe dei.

Mas também sei que cada vez que alguém pronuncia “Aurora”, está a dizer muito mais do que um nome: está a afirmar uma escolha, uma história, uma esperança.

E vocês? Já sentiram o peso das expectativas dos outros sobre as vossas escolhas? Até onde iriam para defender aquilo em que acreditam?