Nada Entre Fraldas e Silêncios: O Grito de Uma Mãe Portuguesa
— Outra vez sentada no sofá, Mariana? O bebé só dorme e come, não percebo porque estás sempre tão cansada.
As palavras do Rui ecoaram pela sala como um trovão. Senti o sangue ferver-me nas veias, mas não consegui responder. Olhei para o pequeno Tomás, finalmente adormecido no berço improvisado ao lado do sofá. O silêncio dele contrastava com o tumulto dentro de mim. Era como se cada suspiro do meu filho fosse um lembrete do quanto eu estava sozinha.
Lembro-me do dia em que soube que estava grávida. O Rui chorou de alegria, os meus pais trouxeram flores, e até a vizinha do terceiro andar me deu um abraço apertado. Mas ninguém me avisou que a maternidade podia ser tão solitária. Ninguém me preparou para as noites em claro, para o medo constante de falhar, para o peso esmagador da responsabilidade.
— Mariana, ouviste o que eu disse? — insistiu o Rui, já impaciente.
— Ouvi, Rui. — respondi num fio de voz. — Mas não é só dormir e comer. Ele chora, precisa de colo, precisa de mim a cada segundo. Eu não paro um minuto.
Ele bufou e virou costas. Fiquei ali, sentada, a olhar para as paredes da nossa sala pequena em Almada, onde cada objeto parecia testemunha muda da minha exaustão. O relógio marcava três da tarde e eu ainda não tinha tomado banho. A loiça acumulava-se na cozinha e o cheiro a leite azedo misturava-se com o aroma do café frio.
A minha mãe ligava todos os dias:
— Filha, tens de te arranjar. Não podes deixar que o bebé te consuma assim.
Mas como é que eu podia explicar-lhe que até pentear o cabelo era uma tarefa hercúlea? Que cada vez que Tomás chorava, sentia uma culpa esmagadora por não saber imediatamente o que ele queria?
O Rui chegava do trabalho e esperava jantar na mesa, a casa arrumada e um sorriso nos meus lábios. Mas eu só queria dormir. Só queria que alguém me dissesse: “Estás a fazer o melhor que consegues”.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre a desarrumação da casa, fechei-me na casa de banho e chorei em silêncio. Senti-me pequena, inútil, invisível. Lembrei-me das amigas que diziam que ser mãe era a melhor coisa do mundo. Porque é que comigo parecia tão difícil?
No dia seguinte, tentei fazer tudo certo. Preparei o jantar cedo, arrumei a sala enquanto Tomás dormia no sling preso ao meu peito. Quando o Rui chegou, sorri-lhe com esforço.
— Vês? Quando queres até consegues — disse ele, sem notar as olheiras fundas nem as mãos trémulas.
Naquela noite, Tomás teve cólicas. Passei horas a embalá-lo nos braços enquanto o Rui dormia profundamente no quarto ao lado. Ouvia-o ressonar enquanto eu sussurrava canções de embalar e sentia as lágrimas escorrerem-me pelo rosto.
Comecei a evitar os convívios familiares. Não suportava ouvir os comentários:
— O Rui ajuda-te muito?
— Já voltaste ao teu peso?
— O Tomás já dorme a noite toda?
Sentia-me julgada por tudo: pelo corpo, pela casa, pelo choro do meu filho. Até pelo meu silêncio.
Certa tarde, depois de uma manhã particularmente difícil em que Tomás não parou de chorar, sentei-me no chão da cozinha e liguei à minha amiga Sofia.
— Sofia, eu não aguento mais. Sinto-me um fracasso.
Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Mariana, tu não estás sozinha. Eu também me senti assim quando nasceu a Matilde. Mas ninguém fala disto porque temos vergonha. Porque achamos que temos de ser super-mulheres.
Essas palavras foram como um bálsamo. Pela primeira vez em meses senti-me compreendida.
Mas o Rui continuava distante. Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as contas da casa — porque agora só havia um salário — ele atirou:
— Se calhar devias procurar um trabalho em part-time. Assim distraías-te e ajudavas nas despesas.
Olhei para ele incrédula:
— Achas mesmo que consigo trabalhar neste estado? Achas que alguém me vai contratar com estas olheiras e este cansaço?
Ele encolheu os ombros:
— Outras conseguem.
Foi nesse momento que percebi: ele não fazia ideia do que era ser mãe a tempo inteiro. Não via as horas passadas a tentar adivinhar porque chorava o Tomás, as fraldas mudadas às três da manhã, os banhos apressados enquanto ele gritava no berço.
Comecei a escrever num caderno tudo o que fazia durante o dia: quantas vezes mudava fraldas, quantas vezes dava de mamar, quantos minutos conseguia estar sentada sem ser interrompida pelo choro do Tomás. Mostrei-lhe uma noite à mesa.
— Achas mesmo que isto é “não fazer nada”?
Ele leu em silêncio e pela primeira vez pareceu hesitar.
— Não fazia ideia… — murmurou.
Mas no dia seguinte tudo voltou ao mesmo. A rotina esmagadora, a solidão dos dias longos em casa com um bebé que dependia de mim para tudo.
Comecei a sentir-me cada vez mais ansiosa. Tinha medo de sair à rua sozinha com o Tomás. Tinha medo de adormecer e não acordar se ele precisasse de mim. Tinha medo de admitir que precisava de ajuda.
Um dia, durante uma consulta no centro de saúde, desabei à frente da enfermeira:
— Eu não estou bem. Sinto-me perdida.
Ela olhou para mim com ternura e disse:
— Mariana, isto é mais comum do que pensa. Muitas mães sentem-se assim. Não tenha vergonha de pedir ajuda.
Foi aí que decidi procurar apoio psicológico. Comecei a ir a sessões semanais onde finalmente podia falar sem medo de ser julgada. Aos poucos fui recuperando algum equilíbrio, mas a relação com o Rui nunca mais foi a mesma.
Ele continuava ausente, preso à ideia de que eu devia dar conta do recado sozinha porque “as nossas mães também conseguiram”.
Certa noite, depois de adormecer o Tomás, sentei-me ao lado dele no sofá.
— Rui, precisamos falar. Eu não sou menos mulher por admitir que isto me está a custar. Preciso que estejas comigo nisto.
Ele olhou para mim cansado:
— Eu também estou cansado, Mariana. Trabalho todo o dia para sustentar esta casa…
— Mas quando chegas aqui és pai! — interrompi-o com voz trémula — Não és só mais um hóspede!
O silêncio entre nós foi pesado como chumbo. Pela primeira vez vi lágrimas nos olhos dele.
— Não sei como te ajudar — confessou ele baixinho.
Abracei-o sem palavras. Talvez fosse esse o problema: ninguém nos ensinou a pedir ajuda nem a dar apoio verdadeiro.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela Mariana ingénua do início da gravidez. Aprendi à força que ser mãe em Portugal é muitas vezes um ato solitário e invisível. Que há uma muralha de silêncio à volta das dificuldades reais da maternidade — porque ninguém quer ouvir verdades desconfortáveis.
Pergunto-me: quantas mulheres vivem presas neste ciclo de culpa e solidão? Quantos pais se escondem atrás do trabalho para não enfrentar as suas próprias fragilidades? E nós, como sociedade — quando vamos finalmente ouvir o grito silencioso das mães?