Estranha no Meu Próprio Lar: A História de Maria em Lisboa

— Mãe, não podes deixar as panelas assim! — gritou a Joana da cozinha, enquanto eu, sentada à mesa, tentava disfarçar o tremor nas mãos. O cheiro do café fresco misturava-se ao aroma do pão torrado, mas nada conseguia abafar o peso daquela frase. Era como se cada palavra dela me empurrasse para mais longe, para fora daquela casa que, supostamente, agora era minha também.

Quando o António morreu, senti que o chão se abria sob os meus pés. Quarenta e dois anos de casamento, partilhados entre alegrias e discussões, entre filhos e netos, entre silêncios e risos. De repente, tudo ficou vazio. A casa em Setúbal parecia um túmulo — fria, silenciosa, cheia de ecos do passado. A Joana insistiu para que viesse viver com ela e o Rui, o meu genro. “Vai ser bom para ti, mãe. Não podes ficar sozinha.”

No início, acreditei. Arrumei as minhas coisas em duas malas — o resto ficou para trás, doado ou esquecido — e apanhei o comboio para Lisboa. Lembro-me de olhar pela janela e ver as árvores a correrem ao contrário, como se fugissem de mim. Cheguei à estação de Santa Apolónia com um nó na garganta.

A Joana recebeu-me com um abraço apressado. O Rui sorriu, mas logo voltou ao telemóvel. O Tomás, o meu neto de dez anos, nem largou os auscultadores. “A avó vai ficar connosco agora!”, anunciou a Joana. Ninguém respondeu.

Os primeiros dias foram estranhos. Acordava cedo demais para aquela casa — em Setúbal, o António levantava-se comigo às seis para ver o mar da varanda. Aqui, tudo dormia até tarde. Tentava ajudar: lavava a loiça, arrumava a sala, fazia sopa como fazia para os meus filhos quando eram pequenos. Mas cada gesto parecia um erro.

— Mãe, não mexas nos papéis do Rui! —
— Maria, já não se usa tanto sal na comida… —
— Avó, não sabes usar a box da televisão? —

Sentia-me uma intrusa. O Rui trabalhava em casa e irritava-se com qualquer barulho. A Joana chegava cansada do hospital e queria silêncio. O Tomás vivia no mundo dele, entre videojogos e TikTok.

Uma noite, ouvi-os a discutir no quarto:
— Não aguento mais! Ela está sempre a mexer nas minhas coisas! — dizia o Rui.
— É só uma fase… Ela vai habituar-se — respondia a Joana, mas a voz dela tremia.

Chorei baixinho na almofada. Pensei em voltar para Setúbal, mas já não tinha forças nem coragem. Senti-me velha pela primeira vez na vida.

Os dias arrastavam-se. Comecei a sair sozinha para passear pelo bairro da Graça. Sentava-me num banco do miradouro e olhava Lisboa lá em baixo — tão bonita e tão indiferente à minha dor. Às vezes falava com a Dona Emília, uma vizinha viúva como eu:
— A solidão é pior quando estamos rodeadas de gente — disse-me ela um dia.

Tentei aproximar-me do Tomás:
— Queres que te faça um bolo de chocolate?
Ele encolheu os ombros:
— Não posso comer açúcar… A mãe não deixa.

Senti-me inútil.

Certo domingo, durante o almoço, tentei contar uma história do tempo em que a Joana era pequena:
— Lembras-te daquele verão em Sesimbra? Quando apanhaste um ouriço-do-mar?
A Joana sorriu constrangida:
— Mãe, o Tomás não quer ouvir essas histórias agora…
O Rui levantou-se da mesa antes de terminar de comer.

Naquela noite, escrevi uma carta ao António. Não sabia bem porquê — talvez porque só com ele podia ser eu mesma:
“António,
Sinto tanto a tua falta. Aqui ninguém me vê. Sou um fantasma nesta casa cheia de vida. A Joana diz que preciso de tempo para me adaptar, mas sinto que estou a mais. O Tomás mal fala comigo. O Rui irrita-se com tudo o que faço. Sinto saudades até das tuas resmunguices…”

Guardei a carta na gaveta da mesinha de cabeceira improvisada — um móvel velho onde mal cabiam as minhas coisas.

O tempo foi passando e comecei a adoecer: dores nas costas, insónias, falta de apetite. A Joana marcou consulta no centro de saúde.
— Mãe, tens de te cuidar! — disse ela, mas os olhos estavam fixos no telemóvel.
O médico disse que era ansiedade.
— Precisa de companhia e rotina — aconselhou ele à Joana.
Mas companhia não é só estar no mesmo espaço; é sentir-se parte de alguma coisa.

Um dia, ouvi o Tomás a falar com um amigo ao telefone:
— A minha avó é bué estranha… Está sempre calada ou então quer falar de coisas antigas.

Fui à casa de banho e olhei-me ao espelho: cabelos brancos desalinhados, olhos fundos, pele marcada pelo tempo e pela tristeza. Quem era aquela mulher?

Comecei a sair cada vez mais cedo de casa. Ia ao mercado conversar com as peixeiras, sentava-me no jardim a ver as crianças brincarem. Uma tarde encontrei o Sr. Manuel, antigo colega do António nos estaleiros navais:
— Maria! Ainda te lembras de mim? — perguntou ele com um sorriso aberto.
Conversámos durante horas sobre os velhos tempos em Setúbal. Pela primeira vez em meses senti-me viva.

Quando voltei para casa nesse dia, encontrei a Joana à minha espera:
— Onde estiveste? Estávamos preocupados!
— Fui dar uma volta… Preciso de ar.
Ela suspirou:
— Mãe… Eu sei que isto não está fácil para ti nem para nós. Mas tens de tentar adaptar-te…
Olhei-a nos olhos:
— E tu? Já tentaste adaptar-te a mim?
Ela ficou calada.

Nessa noite sonhei com o António. Estávamos os dois na praia de Sesimbra, ríamos como antigamente. Acordei com lágrimas nos olhos e uma decisão tomada: precisava de recuperar algum controlo sobre a minha vida.

No dia seguinte fui à Junta de Freguesia perguntar sobre atividades para idosos. Inscrevi-me num grupo de caminhadas e numa aula de pintura. Comecei a trazer flores frescas para o quarto e a escrever pequenas histórias sobre o passado.

A relação com a Joana continuava tensa. Um sábado à tarde ouvi-a ao telefone com uma amiga:
— Sinto-me culpada… Mas às vezes só queria ter a casa só para nós outra vez.
Doeu ouvir aquilo — mas compreendi-a também. Afinal, eu própria sentia falta da minha casa, das minhas rotinas.

O Tomás começou a pedir-me boleias para a escola quando a mãe não podia levá-lo. No carro conversávamos sobre música e futebol; aos poucos ele foi abrindo espaço para mim no seu mundo fechado.

O Rui continuava distante; evitava-me sempre que podia. Um dia tentei agradecer-lhe por me receberem em casa:
— Sei que não é fácil ter cá uma sogra…
Ele encolheu os ombros:
— Não é nada pessoal… Só não estava preparado para isto.

Percebi então que todos estávamos perdidos naquela casa: cada um à procura do seu lugar.

No Natal desse ano fiz questão de preparar o bacalhau à moda antiga e convidei também a Dona Emília e o Sr. Manuel. Pela primeira vez desde que cheguei senti alegria verdadeira naquela mesa cheia de gente diferente — todos com as suas saudades e solidões.

Hoje continuo a viver com a Joana e o Rui — mas já não espero ser parte do quotidiano deles como antes esperava. Tenho os meus amigos novos, as minhas caminhadas e as minhas histórias escritas num caderno azul.

Às vezes ainda me sinto uma estranha nesta casa; outras vezes sinto que pertenço ao mundo inteiro.

Pergunto-me: quantos de nós vivem assim — rodeados de família mas sozinhos por dentro? Será possível encontrar um novo lugar quando já perdemos tudo aquilo que nos definia?