Espelhos Partidos: Doze Anos de Silêncio

— Mariana, precisamos de falar. — A voz do Rui ecoou pela cozinha, fria como o azulejo sob os meus pés descalços. O cheiro do café ainda pairava no ar, mas o sabor amargo já não vinha da chávena. Era outra coisa. Uma sombra que se instalara entre nós há meses, talvez anos.

Olhei para ele, tentando decifrar o que vinha a seguir. O olhar dele fugia do meu, pousando ora na bancada, ora na janela onde a chuva batia com força. A nossa filha, Matilde, estava na sala a ver desenhos animados, alheia ao abismo que se abria ali mesmo, a poucos metros dela.

— O que foi agora, Rui? — perguntei, tentando manter a voz firme. Mas dentro de mim, tudo tremia.

Ele hesitou. — Não sei como dizer isto… — começou, e nesse instante soube. Não precisava de ouvir mais nada. O silêncio dele era a confirmação de todos os meus receios.

A minha cabeça começou a rodar. Lembrei-me das noites em que ele chegava tarde, dos sorrisos forçados, das mensagens apagadas do telemóvel. Lembrei-me das discussões sem motivo aparente, dos jantares em silêncio, da distância que se instalara entre nós como uma parede invisível.

— É outra mulher, não é? — As palavras saíram-me num sussurro rouco.

Ele não respondeu logo. Limitou-se a baixar a cabeça e a passar as mãos pelo cabelo. — Mariana… desculpa. Eu nunca quis magoar-te.

Senti o chão fugir-me dos pés. Doze anos juntos. Doze anos de sonhos partilhados, de contas para pagar, de noites sem dormir por causa da Matilde, de férias em família na Costa da Caparica, de discussões sobre quem ia buscar a miúda à escola. Tudo isso parecia agora uma mentira.

— Quem é ela? — perguntei, já sem lágrimas para chorar.

— Chama-se Sofia. Conheci-a no trabalho… — A voz dele era quase um sussurro.

Sofia. Nome comum, rosto desconhecido. Mas naquele momento tornou-se o centro do meu ódio e da minha dor.

— Há quanto tempo? — insisti.

— Uns meses…

Ri-me, um riso seco e amargo. — Meses? E eu aqui em casa a acreditar nas tuas desculpas esfarrapadas!

O Rui tentou aproximar-se, mas recuei. Não queria sentir o cheiro dele, não queria que me tocasse. Senti-me suja, enganada, ridícula.

— E a Matilde? Já pensaste nela? — perguntei, com a voz embargada.

Ele abanou a cabeça. — Não sei o que fazer…

Nesse momento ouvi os passos pequeninos da Matilde a correr até à cozinha. Trazia um desenho na mão e um sorriso nos lábios.

— Mãe! Olha o que fiz! — gritou ela, orgulhosa.

Sorri-lhe como pude e abracei-a com força. O Rui olhou para nós e eu vi nos olhos dele uma tristeza profunda. Mas não era suficiente para perdoar.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Liguei à minha mãe, Dona Teresa, que sempre desconfiara do Rui mas nunca mo dissera diretamente.

— Eu avisei-te, Mariana… Os homens são todos iguais — disse ela ao telefone, sem rodeios.

— Mãe, não preciso disso agora — respondi, tentando conter as lágrimas.

A minha irmã mais nova, Joana, foi diferente. Veio logo ter comigo e ficou comigo aquela noite. Fizemos chá e falámos até de madrugada.

— Vais superar isto — disse ela, segurando-me a mão. — És mais forte do que pensas.

Mas eu não me sentia forte. Sentia-me vazia. O Rui saiu de casa nessa semana. Disse que precisava de tempo para pensar na vida dele. Deixou-me sozinha com a Matilde e com as contas por pagar.

Os dias passaram devagar. Ia trabalhar como se fosse um robô: entrava no escritório de advogados onde era assistente administrativa e fingia que estava tudo bem. Mas bastava um olhar mais atento para perceber que algo em mim tinha morrido.

As colegas começaram a cochichar nos corredores:

— Ouviste dizer que o marido da Mariana foi-se embora?
— Coitada…

A vergonha era quase tão insuportável como a dor da traição.

Uma noite, depois de deitar a Matilde, sentei-me no sofá com uma garrafa de vinho barato e deixei-me afundar na autocomiseração. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem ao Rui:

“Como foste capaz?”

Ele respondeu minutos depois:

“Desculpa. Não queria que isto acontecesse assim.”

Atirei o telemóvel para o outro lado da sala e chorei até adormecer.

No dia seguinte acordei com uma mensagem da Sofia no Facebook:

“Desculpa meter-me… mas acho que devias saber que o Rui está confuso. Ele ainda gosta muito de ti e da Matilde.”

Fiquei furiosa. Quem era ela para me vir dar lições sobre sentimentos? Apaguei a mensagem sem responder.

Os meses passaram e fui aprendendo a viver sozinha. A Matilde perguntava pelo pai todos os dias:

— Mãe, quando é que o pai volta?

Eu inventava desculpas:

— O pai está a trabalhar muito…

Mas ela não era parva. Um dia entrou no quarto com os olhos cheios de lágrimas:

— O pai já não gosta de nós?

Abracei-a com força e prometi-lhe que tudo ia ficar bem. Mas nem eu acreditava nisso.

A minha mãe insistia para eu ir à missa aos domingos:

— Deus ajuda quem sofre com dignidade — dizia ela.

Mas eu sentia-me cada vez mais distante da fé e das pessoas à minha volta.

Um dia recebi uma carta do tribunal: o Rui queria oficializar a separação e discutir a guarda da Matilde.

Fiquei em choque. Liguei-lhe imediatamente:

— Rui, vais mesmo fazer isto?

Ele respondeu com voz cansada:

— Mariana… temos de pensar no melhor para a Matilde.

O melhor para ela? Separar-se dos pais era o melhor?

A discussão subiu de tom:

— Tu é que estragaste tudo! — gritei-lhe ao telefone.
— Eu? Tu nunca me ouviste! Sempre puseste tudo à frente do nosso casamento: o trabalho, a tua mãe, até a Joana!
— E tu? Sempre foste egoísta! Nunca quiseste saber do que eu sentia!
— Chega! — gritou ele antes de desligar.

Senti-me derrotada. Fui à varanda fumar um cigarro — coisa que não fazia há anos — e olhei para Lisboa iluminada lá em baixo. Perguntei-me onde tinha falhado.

A Joana apareceu nessa noite com um bolo de chocolate:

— Não podes deixar que isto te destrua — disse ela enquanto cortava uma fatia generosa.
— E se eu nunca conseguir perdoar? Se nunca conseguir confiar em ninguém?
— Vais conseguir — garantiu ela. — Mas tens de te perdoar primeiro.

As palavras dela ficaram comigo durante dias.

O processo no tribunal foi doloroso. O Rui queria guarda partilhada; eu achava que ele não merecia depois do que fez. Discutimos à frente dos advogados enquanto a Matilde desenhava corações num bloco de notas.

No final, o juiz decidiu pela guarda partilhada. Tive vontade de gritar, mas limitei-me a acenar com a cabeça e sair dali o mais depressa possível.

O tempo passou devagarinho depois disso. Fui aprendendo a viver com menos: menos dinheiro, menos certezas, menos ilusões. Mas também fui descobrindo pequenas alegrias: os passeios ao domingo com a Matilde no Jardim da Estrela; os serões em casa da Joana; as conversas longas com amigas antigas que reapareceram quando souberam do meu desgosto.

Um dia encontrei o Rui na rua com a Sofia. Ele pareceu envergonhado; ela baixou os olhos. Senti raiva mas também pena deles — pena por terem destruído uma família por algo tão frágil como uma paixão passageira.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que começou esta história: mais dura talvez, mas também mais livre. Aprendi que ninguém nos pode roubar aquilo que somos por dentro — nem mesmo quem jurou amar-nos para sempre.

Às vezes pergunto-me: será possível reconstruir-nos depois de uma traição tão profunda? Ou ficamos sempre partidos como espelhos antigos? E vocês… já passaram por algo assim? Como encontraram forças para recomeçar?