Entre Silêncios e Gritos: O Preço do Amor de Mãe
“Porquê é que nunca tens dinheiro para mim?”
A pergunta do Tiago ecoou pela cozinha fria, como se tivesse partido um vidro invisível entre nós. Eu estava a lavar a loiça, as mãos já doridas da água gelada, e ele encostado à porta, braços cruzados, olhar duro. Oiço a voz da minha mãe na cabeça: “Filhos são para a vida toda, Maria.” Mas ninguém me avisou que às vezes a vida pesa tanto.
“Tiago, já falámos sobre isto. O dinheiro não cai do céu. E tu sabes que este mês foi complicado.”
Ele bufou, revirando os olhos. “Pois, mas para a Mariana há sempre qualquer coisa. Para mim é sempre não.”
A Mariana, minha filha mais nova, estava no quarto, provavelmente a fingir que estudava. Senti o coração apertar-se. Não era verdade o que ele dizia, mas também não era mentira. Tento equilibrar tudo, mas às vezes falho. E ele sente cada falha como uma traição.
“Não digas disparates, filho. Faço o melhor que posso.”
“Pois fazes. Mas nunca chega.”
O silêncio caiu pesado. Oiço o relógio da parede marcar cada segundo da nossa distância. Lembro-me de quando ele era pequeno e corria para mim com os joelhos esfolados, a pedir colo. Agora só pede dinheiro — e eu não tenho nem colo nem moedas para lhe dar.
Sentei-me à mesa, as mãos ainda húmidas. “Tiago, senta-te aqui comigo.”
Ele hesitou, mas acabou por se sentar, de má vontade.
“Sabes que perdi o emprego no supermercado há dois meses. Estou a fazer limpezas quando aparece alguma coisa. O teu pai… bem, sabes como é.”
Ele olhou para o chão. O pai dele, o Rui, saiu de casa quando o Tiago tinha dez anos. Prometeu mundos e fundos, mas nunca cumpriu nada. Às vezes manda uma mensagem no Natal ou no aniversário. Dinheiro? Nem vê-lo.
“Eu só queria ir ao cinema com os meus amigos. Não é pedir muito.”
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim — não dele, mas do mundo inteiro. Do Rui, dos patrões que me despediram sem aviso, da vida que nunca me deu tréguas.
“Tiago, eu também queria muita coisa. Queria poder dar-te tudo. Mas não posso.”
Ele levantou-se de repente, a cadeira a arrastar-se pelo chão. “Pois, tu nunca podes!” E saiu porta fora.
Fiquei ali sentada, a olhar para as mãos vazias. Senti-me pequena, inútil. Lembrei-me do dia em que trouxe o Tiago para casa pela primeira vez — tão pequenino nos meus braços, tão dependente de mim para tudo. Agora parecia odiar-me por não conseguir ser tudo aquilo que ele precisava.
A Mariana apareceu à porta da cozinha, olhos grandes e assustados.
“Mãe… o mano está zangado?”
Sorri-lhe como pude. “Está só chateado, querida. Vai passar.”
Ela aproximou-se e abraçou-me pela cintura. Senti-lhe o cheiro a champô barato e lágrimas vieram-me aos olhos.
“Eu gosto muito de ti”, murmurou ela.
Abracei-a com força. “Eu também te amo.”
Nessa noite quase não dormi. Fiquei a ouvir os passos do Tiago no corredor quando voltou tarde, o ranger da porta do quarto dele. Pensei em tudo o que tinha feito mal — ou talvez não tivesse feito nada mal, talvez fosse só assim a vida.
No dia seguinte acordei cedo para ir limpar um escritório no centro de Lisboa. O autocarro estava cheio de gente cansada como eu. Olhei pela janela e vi as ruas cinzentas da cidade — prédios velhos, grafitis nas paredes, gente apressada com sacos do Lidl.
No trabalho ouvi as outras mulheres falarem dos filhos: uns estavam na universidade, outros emigrados em França ou na Suíça. Senti inveja e vergonha ao mesmo tempo.
Quando voltei a casa ao fim do dia encontrei o Tiago sentado à mesa com um papel na mão.
“Mãe… podes assinar isto?”
Peguei no papel: autorização para uma visita de estudo.
“Quanto custa?” perguntei logo.
“É só cinco euros…” disse ele baixinho.
Suspirei fundo. Tirei da carteira as moedas que tinha juntado durante a semana — trocos das limpezas e das compras — e contei-as uma a uma.
“Fica aqui tudo o que tenho até sexta-feira”, disse-lhe.
Ele olhou para mim com um misto de culpa e orgulho ferido.
“Desculpa ter gritado ontem”, murmurou.
Sentei-me ao lado dele e toquei-lhe na mão.
“Filho… eu sei que não é fácil para ti. Também não é para mim.”
Ele ficou calado um bocado e depois disse:
“Às vezes parece que sou eu contra o mundo.”
Sorri-lhe tristemente.
“Às vezes parece que somos todos contra o mundo.”
A Mariana apareceu na sala com um desenho na mão: era eu com eles os dois ao lado, todos sorridentes num jardim cheio de flores impossíveis.
“Fiz para ti, mãe!”
Abracei-os aos dois e senti uma paz breve — como um raio de sol entre nuvens negras.
Mas a trégua durou pouco. No fim-de-semana seguinte o Tiago chegou a casa com os olhos vermelhos e um corte no sobrolho.
“O que aconteceu?” perguntei em pânico.
“Nada”, respondeu ele seco.
“Tiago! Diz-me já!”
Ele hesitou e depois explodiu:
“Andei à porrada com o João porque ele gozou comigo por não ter sapatilhas novas! Toda a gente tem menos eu!”
Senti uma raiva impotente — contra o João, contra os pais dele, contra todos os meninos ricos do bairro novo ali ao lado.
“Filho… eu sei que custa. Mas não é pelas sapatilhas que vales menos.”
“Pois não! Mas ninguém quer saber disso!” gritou ele antes de se fechar no quarto.
Nessa noite chorei baixinho na casa de banho para ninguém ouvir. Senti-me derrotada por um par de sapatilhas e por um mundo onde quem tem mais vale mais.
No dia seguinte fui falar com a professora dele na escola.
“Maria… o Tiago está diferente”, disse ela com voz suave. “Anda mais calado, mais agressivo.”
Expliquei-lhe tudo — o desemprego, as dificuldades, as discussões em casa.
Ela ouviu-me com atenção e depois disse:
“Não está sozinha nisto. Se precisar de ajuda… há apoios sociais.”
Saí dali humilhada mas também aliviada — alguém via o meu esforço invisível.
Em casa tentei falar com o Tiago:
“Filho… se quiseres conversar…”
Ele encolheu os ombros.
“Já não vale a pena.”
Mas naquela noite deixou um bilhete na minha almofada:
“Mãe desculpa ser assim às vezes. Eu amo-te.”
Guardei aquele papel como um tesouro.
Os meses passaram devagar. Arranjei outro trabalho num café; as coisas melhoraram um pouco mas nunca muito. O Tiago foi crescendo — rebelde mas generoso no fundo; a Mariana continuou doce e sonhadora.
Às vezes penso se falhei como mãe por não lhes dar tudo aquilo que queriam — ou se lhes dei aquilo que realmente precisavam: amor sem condições, mesmo quando tudo faltava à volta.
Agora olho para trás e pergunto-me: será que algum dia vamos conseguir quebrar este ciclo? Ou será que estamos todos condenados a lutar contra fantasmas antigos?
E vocês? O que fariam no meu lugar?