Entre o Trabalho, os Filhos e a Solidão: Quando o Meu Marido Desistiu de Nós
— Vais mesmo sair agora, Miguel? — perguntei, tentando esconder o tremor na voz enquanto segurava a colher de sopa e olhava para a mesa posta, onde os miúdos já começavam a reclamar de fome.
Ele nem sequer levantou os olhos do telemóvel. — Tenho de ir ao escritório, Marta. O Rui pediu-me para rever uns contratos. — A voz dele era seca, quase automática, como se já tivesse decorado aquela desculpa.
Olhei para os meus filhos: a Inês, de oito anos, fazia desenhos no guardanapo; o Tomás, de cinco, batia com a colher na mesa. Senti um nó apertar-me o peito. Mais uma noite sozinha. Mais uma vez a responsabilidade toda em cima dos meus ombros.
Quando Miguel saiu, fechei os olhos por um segundo e respirei fundo. O cheiro da sopa de legumes misturava-se com o som da televisão ao fundo e o tilintar dos talheres. Era assim quase todos os dias há meses. Ele chegava tarde, cansado, e eu já nem sabia se era do trabalho ou se era de mim.
Depois de deitar as crianças, sentei-me na sala escura. O silêncio era ensurdecedor. Peguei no telemóvel e percorri o Instagram: amigas em viagens, colegas a celebrar promoções, primas a abrir negócios próprios. E eu? Eu estava ali, exausta, com olheiras profundas e uma sensação constante de fracasso.
No dia seguinte, acordei antes do despertador. Preparei os lanches, vesti os miúdos e tentei não perder a paciência quando o Tomás não queria calçar as meias. Miguel já tinha saído — ou talvez nunca tivesse voltado verdadeiramente para casa.
No trabalho, a minha chefe, Dona Teresa, chamou-me ao gabinete.
— Marta, tens andado distraída. Preciso que estejas mais focada. O relatório do mês passado tinha erros.
Senti as lágrimas ameaçarem cair. Engoli em seco.
— Desculpe, Dona Teresa. Vou rever tudo hoje à hora de almoço.
Ela suspirou e olhou-me com alguma compaixão.
— Sei que tens filhos pequenos… mas precisamos de ti aqui.
Saí do gabinete com um peso ainda maior nos ombros. No refeitório, sentei-me sozinha e olhei para o telemóvel. Uma mensagem da minha mãe: “Passa cá em casa este fim-de-semana? O teu pai anda preocupado contigo.” Não respondi. Não queria ouvir mais conselhos sobre como devia “fazer um esforço” pelo casamento ou “dar tempo ao tempo”.
À noite, tentei falar com Miguel.
— Precisamos de conversar — disse-lhe enquanto ele tirava o casaco.
Ele revirou os olhos.
— Agora não, Marta. Estou cansado.
— Mas isto não pode continuar assim! Sentes-te feliz? Porque eu não estou! — A minha voz saiu mais alta do que queria.
Ele atirou as chaves para cima da mesa e olhou-me finalmente nos olhos.
— Achas que eu tenho culpa disto tudo? Também estou farto! — gritou ele.
As crianças apareceram à porta da sala, assustadas.
— Não gritem… — sussurrou a Inês.
Senti-me miserável. Fui até ao quarto deles, sentei-me na cama e abracei-os até adormecerem.
Os dias seguintes foram uma sucessão de rotinas automáticas: trabalho, escola, supermercado, casa. Miguel estava cada vez mais ausente — fisicamente e emocionalmente. Comecei a perguntar-me se havia outra mulher. Ou se simplesmente já não gostava de mim.
Uma noite, depois de pôr os miúdos na cama, liguei à minha irmã Ana.
— Não aguento mais — confessei-lhe entre soluços. — Sinto-me invisível. Ele não quer saber de mim nem das crianças…
Ela ficou em silêncio durante uns segundos.
— Marta… já pensaste em procurar ajuda? Terapia? Ou até separar-te?
A palavra ficou a ecoar na minha cabeça: separar-me. Era isso que queria? Ou só queria que ele voltasse a ser quem era?
No fim-de-semana seguinte fui à casa dos meus pais. A minha mãe fez arroz doce e tentou animar-me com histórias antigas do tempo em que ela própria sentiu que o meu pai se afastava.
— Os homens às vezes perdem-se no trabalho… mas depois voltam — disse ela, com um sorriso triste.
Mas eu sabia que não era só isso. O Miguel já não estava ali há muito tempo.
Numa segunda-feira chuvosa, cheguei atrasada ao trabalho porque o Tomás fez birra na escola. A Dona Teresa chamou-me outra vez ao gabinete.
— Marta… tens mesmo de decidir o que queres para a tua vida. Assim não podes continuar — disse ela, desta vez sem compaixão na voz.
Senti-me humilhada. Saí do trabalho mais cedo e fui buscar as crianças à escola antes da hora. Levei-os ao parque e sentei-me num banco enquanto eles brincavam na lama.
Olhei para o céu cinzento e perguntei-me: como é que cheguei aqui? Onde é que me perdi?
Nessa noite, quando Miguel chegou a casa, estava sentada à mesa da cozinha com uma chávena de chá nas mãos.
— Preciso que me oiças — disse-lhe calmamente.
Ele sentou-se à minha frente, desconfiado.
— Eu já não aguento esta vida — continuei. — Sinto-me sozinha mesmo quando estás aqui. Não quero isto para mim nem para os nossos filhos.
Ele passou as mãos pelo cabelo e ficou em silêncio durante muito tempo.
— Eu também não sei o que quero — admitiu finalmente. — Mas sei que assim não dá para continuar.
Foi nesse momento que percebi que talvez fosse mesmo o fim. Ou talvez fosse um novo começo — para mim, para ele, para os nossos filhos.
Agora escrevo estas palavras sentada no sofá da sala vazia, enquanto os miúdos dormem no quarto ao lado. Ainda não sei como vai ser o futuro. Mas sei que mereço mais do que esta solidão partilhada.
Será que somos obrigadas a aceitar menos do que aquilo que precisamos só porque temos medo de ficar sozinhas? Quantas mulheres vivem assim em silêncio? E vocês… já sentiram isto?