Entre o Amor de Mãe e o Limite da Tolerância: Quando a Ajuda se Torna Condicional
— Inês, não posso continuar a ver-te assim. — A minha voz tremeu, mas mantive-me firme. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o silêncio pesado da cozinha. Ela olhou para mim, olhos vermelhos, cabelo preso à pressa. — Mãe, por favor, não comeces outra vez…
Respirei fundo. O relógio marcava quase meia-noite. O pequeno Tomás dormia no quarto ao lado, alheio ao mundo dos adultos. — Não é começar outra vez, filha. É que já não aguento ver-te a definhar. O João… ele não te merece.
Ela baixou os olhos, mexendo nervosamente na chávena. — Ele está a tentar, mãe. Arranjou uns biscates…
— Biscates? — interrompi, incapaz de conter a amargura. — Tu trabalhas oito horas por dia no supermercado, chegas a casa e ainda tens de cuidar do Tomás e da casa. E ele? Ele passa os dias no café com os amigos ou a jogar PlayStation!
O silêncio caiu entre nós como uma sentença. Lembrei-me do dia em que Inês me apresentou o João. Tinha um sorriso fácil, promessas nos olhos e mãos quentes. Mas as promessas evaporaram-se depressa. Primeiro foi o desemprego, depois os trabalhos temporários que nunca duravam mais de uma semana. Sempre havia uma desculpa: o patrão era injusto, o salário era pouco, os colegas eram maus.
— Mãe, eu amo-o. — A voz dela saiu num sussurro quase infantil.
— E eu amo-te a ti! — respondi, sentindo as lágrimas a ameaçarem-me também. — Mas amar não é aceitar tudo. Amar também é saber dizer basta.
Ela levantou-se de repente, empurrando a cadeira para trás. — Não percebes! Não é assim tão simples! Ele é o pai do meu filho!
— E tu és minha filha! — gritei antes de me conter. O eco da minha voz assustou-me. Baixei o tom: — Inês, eu só quero ajudar-te…
Ela ficou de costas para mim, olhando pela janela para a rua vazia. — Se queres ajudar-me, aceita as minhas escolhas.
Aquela noite foi só mais uma de muitas discussões. Os dias seguintes passaram-se em silêncio tenso. Eu ajudava como podia: levava comida, ficava com o Tomás quando ela precisava de trabalhar ao sábado, pagava contas atrasadas sem ela saber.
Mas tudo piorou quando recebi um telefonema do banco: a casa dela estava prestes a ser penhorada. O João tinha pedido um empréstimo sem lhe contar e gastara tudo em apostas online.
— Inês, isto não pode continuar! — disse-lhe assim que entrou em minha casa, olhos inchados de tanto chorar.
Ela caiu no sofá como se o corpo já não lhe pertencesse. — Eu não sabia, mãe… Ele prometeu que ia mudar…
Sentei-me ao lado dela e agarrei-lhe as mãos. — Filha, escuta-me bem: eu só te ajudo se saíres dessa relação. Não vou dar mais dinheiro enquanto ele estiver contigo.
Ela olhou para mim como se eu tivesse acabado de lhe dar uma bofetada. — Vais pôr-me na rua?
— Não! — respondi imediatamente. — A minha porta está sempre aberta para ti e para o Tomás. Mas não vou alimentar alguém que te destrói.
O conflito familiar tornou-se público quando o João apareceu à porta da minha casa aos gritos:
— A senhora quer destruir a minha família! Sempre se meteu onde não é chamada!
Os vizinhos espreitavam pelas janelas enquanto ele me insultava e Inês chorava no corredor. O Tomás acordou assustado e agarrou-se às minhas pernas.
— Chega! — gritei eu, finalmente. — Ou saem os dois daqui agora ou chamo a polícia!
O João saiu batendo com a porta. Inês ficou sentada no chão, abraçada ao filho.
Nos dias seguintes, ela não me atendeu o telefone. Soube pelos vizinhos que voltou para casa com o João. Senti-me derrotada, mas mantive-me firme na decisão: não ajudaria mais enquanto ela estivesse com ele.
O tempo passou devagar. O Natal aproximava-se e eu via as luzes nas ruas com um nó na garganta. Recebi uma mensagem dela na véspera:
“Mãe, preciso de falar contigo.”
Quando chegou, trazia apenas uma mochila e o Tomás pela mão.
— Acabou, mãe… Não aguento mais.
Abraçámo-nos as três gerações ali na entrada: eu, ela e o pequeno Tomás.
Os meses seguintes foram duros: Inês chorava muito, sentia-se culpada por ter desistido do casamento, mas aos poucos foi recuperando forças. Arranjou um segundo emprego numa pastelaria e começou a estudar à noite para tirar um curso de auxiliar de educação infantil.
O João tentou voltar várias vezes, mas desta vez ela manteve-se firme.
A nossa relação também mudou: aprendi a respeitar as escolhas dela, mas também a impor limites ao meu amor de mãe.
Hoje olho para trás e pergunto-me: até onde deve ir o amor de uma mãe? Será justo impor condições à ajuda? Ou será que às vezes é preciso ser dura para salvar quem amamos?
E vocês? O que fariam no meu lugar?